quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Capítulo 14 - Pequenas Faíscas de Luz

Nas profundezas de um oceano onírico, uma garota de cabelos dourados derramava uma incontável quantidade de lágrimas sobre os corpos das pessoas mortas em alguma ocasião impossível de ser especificada. Toda a tristeza do mundo inundava a sua alma, mesmo que no fundo ela acreditasse, nem que fosse bem pouco, que a morte não era o fim. Era a sensação de uma perda sentida da forma mais primordial possível. A revolta, a incompreensão e o vazio. Os sonhos de Sara eram compostos disso — e quase que somente disto.
Foi com a imagem do rosto dela que Manuela acordou naquela manhã — a fria manhã do dia da viagem para Amsterdã. Levantou-se da cama e foi à janela: uma camada nostálgica de cores sombrias dominava grande parte daquela região da cidade de São Paulo. As nuvens negras provavelmente continuariam obscurecendo a metrópole até o fim do dia. A data: Quinze de Agosto de 2008, uma sexta-feira.
Ligou o rádio e colocou um CD: a faixa Sometimes, da banda My Bloody Valentine começou a tocar, e Manuela deixou-se envolver por todo aquele sentimento acolhedor e enlevante que o shoegaze da música proporcionava. Olhou o relógio de ponteiro pendurado na parede do quarto: eram quase nove horas da manhã. Cecília ainda deveria estar dormindo. “Vou deixá-la dormir até umas nove e meia...”, pensou Manuela. Deu uma bocejada sutil e partiu para o chuveiro.



A violência assolou a mente criativa do jovem Jorge no instante em que ele pousou os olhos na dilacerante cena: sua preciosa e amada namorada aos beijos com o garoto mais vulgar do colégio. Relacionavam-se com tanto fervor ali no meio da grama que Jorge viu o fogo do inferno dominar-lhe a alma. Olhou ao redor com fúria: a menos de um metro dele, havia uma barra de ferro que devia ter pertencido a alguma grade atualmente destruída. Apanhou-a e segurou o objeto com firmeza nas duas mãos. Uma incrível sensação de poder fazia, agora, par com o instinto violento que estava a apossá-lo. Fitou mais uma vez a cena da traição da namorada — descontrolado mas determinado, correu naquela direção. Quando os dois o viram se aproximar, rapidamente começaram a gaguejar tentativas de desculpas como “Não é o que você está pensando!” ou “Espera, eu posso explicar!”, mas isso, indubitavelmente, não ajudaria os traidores. Eles estavam nas mãos de Jorge, mas Jorge provavelmente não estava nas mãos de nenhum Deus.
— Vocês estão vendo essa barra de ferro que eu tenho aqui? — ameaçou Jorge — Observem bem. É com ela que eu vou manchar a minha alma e destruir a vida de vocês. E eu vou rir muito disso. Eu mereço a minha vingança. Se Deus não puder entender isso, eu prefiro acreditar no demônio!
Com força e intensidade, golpeou, no rosto, o garoto que beijava sua namorada, apenas fazendo-o sangrar. Não tinha o intuito de desacordá-lo logo de início, mas, na realidade, pretendia se certificar do total sofrimento do infeliz. Viu, de súbito, a namorada pegar o celular: imaginou Jorge que ela iria tentar chamar algum tipo de ajuda —, logo, acertou-a com a barra também, o que acabou desacordando-a, mesmo o golpe em si tivesse sido menos agressivo.
— Ahahahahahahahaha! — Jorge gargalhava e seu coração pulsava ferozmente.
Mais uma vez, bateu no garoto, e ria ao ver o sangue do desgraçado espalhar-se por todos os lados, espirrando com maestria e horror, o que seguiu mais uma seqüência de golpes, onde Jorge procurava acertar cada canto que acreditava serem merecedores de dor. Como último ataque, fincou, com toda sua força, a barra na palma da mão direita do jovem, atravessando-a e cravando-a no chão — e um grito doloroso, mortal e ensurdecedor ecoou por todas as extensões do colégio.


— Ei, Cecília! — falou Manuela, enquanto as duas tomavam café juntas na cozinha do apartamento — Tinha uma coisa que eu queria te perguntar a muito tempo. Na verdade, eu só perguntei pra uma pessoa antes, o Dante.
— Pode falar. Estou ouvindo.
— Tá bom... É uma pergunta esquisita, mas... Você já teve a estranha sensação de que... O mundo nos vê?
Cecília sorriu e respondeu com confiança na voz:
— Não é só uma sensação, Manu. O mundo nos vê. E pode ter certeza de que eu não estou sendo nem um pouco tendenciosa. O mundo nos vê de alguma maneira. Não só as coisas vivas, mas os prédios, as construções, os meios de transporte, as ruas, tudo isso pode parecer inanimado, mas existe alguma coisa ali... Alguma coisa tremendamente sinistra. Fico pensando se em Amsterdã também existe esse tipo de coisa. Quer dizer, existir, com certeza existe, só nos resta saber em que magnitude isso acontece. Mas vamos deixar essa conversa de louco pra lá, temos que nos apressar, vamos fazer as malas, amiga, vamos!
Cerca de vinte minutos depois as duas já haviam arrumado tudo e estavam prontas para sair (sim, uma das poucas vezes em que mulheres fizeram as malas tão rápido na história da humanidade!). Manuela usava um cativante vestidinho de listras horizontais brancas e azul-claras, enquanto Cecília vestia uma camiseta laranja onde a frase “Às vezes, sinto o mundo inteiro...” estava estampada, além de um sensual short branco que a cobria do fim da cintura até o início das coxas. Na entrada do condomínio, Jóhann as esperava na Ferrari Enzo prateada.
— Olá, meninas. Isso vai soar redundante, mas vocês estão mais lindas que nunca!
Todos riram. Entraram no carro e partiram.


Jorge abriu os olhos dentro do banheiro do colégio: procurava dentro da sua mente alguma solução para a enrascada em que havia se metido. “Seria mais fácil se eu tivesse matado os dois. Se bem que, como eu sumi com a barra de ferro, vai ser difícil eles provarem que fui eu!”, pensava ele; esfregou o rosto com as mãos e viu o sangue — rapidamente, pôs-se a ir à pia lavar-se. Sua vida havia desmoronado, indiscutivelmente. Não tinha mais motivos pra sentir felicidade, a não ser quando se lembrava da dor dos dois que havia flagelado.
— Aaaaaaaahhhh!!! — gritou sozinho, desesperado e enlouquecido.
Saiu do banheiro e começou a correr de olhos fechados, sem rumo, sem direção, esperando encontrar alguma coisa em seu caminho que o levasse a morte repentinamente; era covarde demais para um suicídio. Mas a verdade é que o pátio do colégio, naquele horário, era mais inofensivo que um ursinho de pelúcia. O máximo que conseguiria seria tropeçar em algum banco e ralar o joelho.
E foi basicamente isso o que aconteceu: Jorge desequilibrou-se ao esbarrar a perna esquerda num banco, acabando por cair pesadamente no piso de mármore branco. Quando ficou de pé de novo, viu um novo mundo. Era a cena mais dolorosa que já havia visto: logo ali, a meio metro dele, uma garota loira chorava, de joelhos, ao ver tanta desgraça junta no mesmo lugar — eram inúmeros corpos de pessoas totalmente distintas, um céu vermelho cobria a visão de seres humanos mortos de fome, sede, ou assassinados das maneiras mais cruéis possíveis. Jaziam ali, nos sonhos de Sara, aqueles que alguns poderiam chamar de injustiçados, mas isso dependia do ponto de vista. Se a morte era o fim ou não, não faria diferença, afinal, aquilo podia muito bem ser um penoso ataque de esquizofrenia.
Quando Jorge piscou, voltou ao mundo real.


Às 14h20min, a Ferrari de Jóhann avançava velozmente ao longo Avenida das Nações Unidas. Cecília e Manuela conversavam, ambas no banco de trás. São Paulo ainda vivia um dia esteticamente sombrio. Talvez fosse chover dali a poucos minutos, mas esses minutos também poderiam ser horas. Nada era certo.
Repentinamente, o islandês virou à direita numa rua que nem ele mesmo sabia o nome e acelerou numa velocidade mais rápida que antes — as garotas estranharam.
— O que aconteceu, Jóhann? Pra quê tanta pressa? — perguntou Manuela.
Ele apenas continuou acelerando. Uma Ferrari Enzo naquela velocidade chamava muita atenção (na verdade, em qualquer velocidade chamaria).
— Jóhann, o que está acontecendo? — insistia Cecília.
Eis que ele freou bruscamente: as duas meninas voaram um pouco para frente.
— Ali está — disse Jóhann, apontando para uma casa marrom consideravelmente esquisita do lado direito da rua — A base principal da nossa agência, a diretoria da Agência Eve. É ali que Leon, Isadora, eu e alguns outros assistentes, fazemos o que precisa ser feito. O avião particular de Leon está localizado no subsolo, debaixo do quintal dos fundos, em uma espécie de base secreta. Vamos lá, eles já devem estar nos esperando.
Jóhann estacionou a Ferrari ao lado de um Rolls-Royce Phantom no estacionamento da residência e desceu do carro — Cecília e Manuela desceram logo em seguida, carregando as malas (que Jóhann imediatamente fez questão de tomar delas para fazer a gentileza de levá-las ele mesmo); os três deram a volta na casa até ao quintal dos fundos. Todos estavam realmente ali, como Jóhann havia previsto. Leon, Isadora, Dante, Luiz, Marina e alguns assistentes. Todos.
— Já estava na hora! — exclamou Isadora ao vê-los.
Leon tirou do bolso uma chave aparentemente comum; dirigiu-a ao chão, onde arrancou um punhado de grama e, para surpresa de todos, via-se uma fechadura ali. Ele inseriu a chave e girou: o chão começou a tremer. A terra se deslocou levemente e era possível ver um buraco com uma escada: aquilo definitivamente era uma passagem subterrânea.


No ponto de ônibus, Jorge não sabia no que pensar. Olhou para o céu: alguns pingos caíam e uma tristeza imensa e abstrata engolia-lhe interna e externamente. Nos tropeços de sua vida, naquele instante choroso e revoltante, naquele instante tão emocionalmente grande, ele a viu mais uma vez. Os cabelos muito cacheados, o belo corpo, o belo rosto, mas acima de tudo, a sensação de independência e fascínio que ela causava. Marina. Eram conhecidos, faziam um cursinho juntos, à tarde. Apesar do muito amor pela namorada (que há algumas horas atrás havia acabado), Marina causava em Jorge uma espécie de paixão visual devastadora — mesmo que ele mal tivesse conhecimento da personalidade da garota.
— O-oi! — gaguejou Jorge. A garota acabava de se aproximar, sentando-se ao lado dele no banco do ponto de ônibus.
— Oi! — respondeu ela, sorridente mas receosa.
— E aí... Tudo bem? — o garoto estava consideravelmente “travado”. Não tinha intimidade com ela e não possuía muitos dotes comunicativos, isso prejudicava a conversa.
— Tudo sim... Só esse tempo que anda meio feio. E com você, tudo certo?
A chuva, sinuosa e ardida, ficava mais grossa — os dois estavam a salvo, debaixo da cobertura. Ao fitá-la bem nos olhos, Jorge mergulhava em profundo estado de encanto, afinal, eram aqueles olhos pungentes, castanho-claros, a coisa que me mais lhe chamava a atenção nela.
— Ah, comigo ta tudo normal também. Levando a vida.
A água despencava ferozmente do céu, a emoção e a tristeza cresciam juntos com o volume da chuva, Jorge estava estremecendo por dentro — não por motivo de a garota estar ao seu lado, mas por um motivo maior, por alguma razão que fazia daquele espaço de tempo algo extremo, entranhável, apesar de tudo que dissesse respeito à sua racionalidade estivesse sendo deixado de lado naquela cena. A data: Oito de Setembro de 2008.


Todos desceram aquela escada atípica e deram de encontro com um grande salão razoavelmente escuro onde se visualizava um avião — ou uma nave — de tamanho médio, cercado por alguns computadores e algumas alavancas.
— Aqui é onde fazemos os sapos fumarem até que explodam — disse Leon — e isso não é uma piada. Nós não somos pessoas totalmente boas, infelizmente, mas lutamos por uma causa maior, uma boa causa maior, que é salvar Sara.
Ao ouvirem aquilo, os jovens rapidamente foram remetidos ao encontro que haviam feito dois dias atrás, onde Marina havia revelado-lhes alguns segredos um tanto quanto questionáveis, mas indiscutivelmente valiosos. Apesar da dúvida, uma coisa tinha que era óbvia: Sara não poderia ser a única coisa pela qual Leon e os outros se interessariam. Era uma questão de lógica, nenhum ser pensante mantém a sua atenção direcionada a somente uma única coisa durante toda a sua existência; isso é inconcebível, de fato.
Leon fez um sinal para os assistentes: os quatro foram, cada um, para os quatro cantos do salão ativar as alavancas. Um ruído alto e mecânico irrompeu no ar. A superfície sobre as suas cabeças abrira-se em sua totalidade, e todos puderam ver o céu. O avião, no entanto, começou a erguer-se levemente sobre uma plataforma que levantava. Leon, então, fez o pedido final daquele “arco”.
— Vamos, subam meus jovens. Está na hora. Estamos diante do futuro. O futuro mais importante que vocês conhecerão. Entram e esqueçam-se do passado. Não acreditem, não confiem, duvidem, mas não deixem de viver!
E, como se todos de repente se sentissem totalmente expostos diante de um ser que aparentemente lia a incerteza em suas mentes, disseram impulsivos “Dane-se!” mentais para si mesmos e partiram rumo à capital holandesa. Era o dia que precederia uma história num mundo turbulento — não que a Holanda fosse um país turbulento, mas as prodigiosas e afligentes lutas psicológicas tinham força suficiente para representar esse mundo.
A data: Quinze de Agosto de 2008. O dia da viagem para Amsterdã.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Capítulo 13 - Uma Noite Antagônica

O tempo passava cada vez mais rápido desde o dia em que os cinco jovens haviam ouvido as explicações saírem das bocas de Jóhann e Leon. Estavam todos de volta à cidade de São Paulo. Leon havia dado-lhes o prazo de uma semana para que se preparassem antes da viagem para Amsterdã. No penúltimo dia de preparações, os cinco, por pedido de Marina, combinaram de se encontrar às 21h00min em frente ao MASP — o Museu de Arte de São Paulo. A noite estava razoavelmente quente, mas parecia poder esfriar a qualquer momento. A própria Marina foi a primeira a chegar, quinze minutos antes do horário marcado. Vestia um sobretudo pardo de lã pura sobre a camiseta branca e calça jeans azul-escura que usava. A sua "atmosfera" já não era mais a mesma de antes: um certo quê de amadurecimento penetrante tomava conta de sua personalidade. Mas ela ainda era, no fundo, a mesma garota que poderia ser infantil ou incoerente a qualquer momento, a mesma garota com dezessete anos chamada Marina; aquela lá, a dos cabelos muito cacheados.
Aos poucos, eles foram chegando: Luiz foi o primeiro a acompanhar Marina na espera pelos outros. Ele veio bem vestido, apesar de sua questionável situação financeira. O rapagão de dezoito anos apresentava-se todo de preto, exceto pela jaqueta vermelha aparentemente velha que vinha trazendo nas mãos.
Cumprimentou Marina com um beijo no rosto e disse:
— Será que é um bom momento pra dizer que você está congestionavelmente linda?
A garota, corando e dando um sorrisinho bobo, agradeceu, mas desviou o assunto em seguida.
— Não sei se é um bom momento ou não, mas ultimamente eu tenho andado muito pensativa. Leon e aquela espiral bizarra dele não me saem da cabeça. Jóhann e Isadora parecem esconder algo. E eu ainda tenho minhas dúvidas a respeito daquela garota Sara, mesmo que eu me lembre vagamente dela. Eu juro que, há um mês, viajar para Amsterdã era a última coisa que eu imaginava que ia fazer. Se bem que eu tenho a intuição de que alguma coisa inesperada ainda vai acontecer antes dessa viagem.
— Marina... Como você consegue ser tão fascinante?
Ela deu outro sorrisinho bobo, mas dessa vez não corou.
— Tá bom, tá bom, você, pelo jeito, não quer falar sobre o caso Sara — disse ela, rindo —, mas a reunião que eu marquei hoje é pra falar justamente sobre isso; ou melhor, eu vou apenas mostrar a vocês que eu sei coisas à respeito de assuntos muito importantes que demonstram as verdadeiras facetas desse tabuleiro obscuro onde nós somos as peças. Muita coisa vai acontecer em muito pouco tempo, e é melhor todos estarem preparados. Inclusive eu.
O garoto, surpreso e ao mesmo tempo confuso, imaginou que Marina estivesse fazendo algum tipo de piada — certamente, se fosse, tratava-se de uma das menos engraçadas.
— Haha... Ha...! — Luiz tentou forçar uma risada.
— O que foi? Qual é a graça?
"Então não foi uma piada!", concluiu ele, mentalmente.
Mais alguns minutos se passaram, dessa vez Cecília e Manuela chegavam ao local: ambas belamente trajadas: Cecília vinha com um vestido com listras brancas e pretas na horizontal, com um par de botas plataformas nos pés; Manuela vestia uma camiseta amarela da banda Sigur Rós, com a foto do Bebê Alien da capa do álbum Ágætis Byrjun estampado no peito, isto somado com a calça jeans preta e bem justa que usava — mas os cabelos vermelhos estavam bem ali, sempre encantando mais do que qualquer outra coisa.




— Boa noite! — disseram as duas, em uníssono.
Luiz, vendo as duas beldades se aproximarem, não pôde evitar outro comentário:
— Cara, eu estou dentro de um harém! Tomara que o Dante não chegue tão cedo!
Todos riram intensamente.
No céu azul-escuro, uma lua cheia brilhava singularmente. Luzes e faróis iam e vinham por todos os lados naquela Avenida Paulista angustiante, tanto pelo seu tamanho, quanto pelo significado dentro de toda a cidade. Todos esperavam Dante com inquietação, enquanto conversavam sobre assuntos triviais.
— Que camiseta esquisita é esta que você está usando, Manuela? — perguntou Marina, realmente sem ter o conhecimento do que se tratava aquele Bebê Alien.
— É da banda Sigur Rós — respondeu Manuela, com um cordial sorriso —, eles são islandeses, as músicas deles são muito boas. São instrumentais, com toques de guitarra e bateria, sei lá, é difícil encaixá-los em um único gênero, dizem que é pós-rock, mas o que eu sei é que é a minha banda favorita, de fato.
— Huumm... Interessante. — sussurrou Marina, vagamente.
— Está esfriando um pouco. — comentou Cecília.
— Dante... Ele está demorando. — soltou Luiz, contrariando a sua própria piada anterior.
Cerca de dez minutos silenciosos se passaram, e lá vinha o garoto Dante, numa calma e aparente autoconfiança jamais vistas antes: vestia uma calça jeans preta e uma simples camiseta branca sem estampa alguma; a barba, sempre malfeita, agora estava impecável — havia agora um brilho tão diferente no rapaz que Manuela, inevitavelmente, sentiu seus sentimentos revirarem-se dentro de si mesma.
Dante se aproximou e, acenando para todos, disse, com ternura:
— Olá, pessoal.
— Olá! — responderam todos.
Organizados um ao lado do outro, formando um círculo, sentados em um canto, sob o corpo principal do MASP, os cinco jovens estavam todos ali para decidirem, afinal, as suas vidas — levar ou não à sério os acontecimentos do dia 29 de Agosto de 1990 era algo extremamente definitivo e importante para o futuro que os aguardava. Marina, abrindo o "debate", falou, imponentemente:
— Senhoras e senhores...! — falou, rindo infantilmente — Essa espécie de reunião que eu marquei com vocês, na verdade, quer dizer mais coisas do que vocês imaginam. Primeiro vou deixar que falem — sim, muita gente já falou durante essa história, mas essas são as considerações finais —, e aí eu falarei por último, pois tenho uma informação extra dentro desse "jogo" no qual somos, forçadamente, as peças, de certo modo, manipuláveis!
E fez aquele sinal de aspas no ar com os dedos indicador e médio das duas mãos. Ninguém entendeu direito o sentido da palavra “jogo”, mas isto ia fazer mais sentido depois.
Trocas de olhares rápidos — Manuela e Dante, de súbito, sentiam calores imensos dentro de seus corações: a paixão dos dois, um pelo outro, parecia estar renascendo (apesar de nunca ter morrido completamente) naquela ocasião inoportuna. Havia todo um clima de parafernália no ar, uma parafernália de pensamentos suspeitos ou de emoções volúveis, todo mundo no meio da presença de uma desagradável falta de proximidade com relação aos outros. Isso soava estranho, mas era o que acontecia.
Na escuridão vasta e luminosa da noite, os jovens debatiam.
— Acho que devemos ter uma imensa dose de bom senso aqui — dizia Dante —, afinal, nós vimos Jóhann se tele transportar na nossa frente e ignorar esse fato é o mesmo que duvidar da própria realidade, isto é, quem nunca ouviu falar de Descartes e suas teorias sobre a impossibilidade de tudo? Tá, eu não quero entrar nesse papo, mas sejamos sinceros, se vamos duvidar do que aconteceu naquele dia, teremos que duvidar de qualquer coisa que aconteceu e vai acontecer na nossa vida. E isso, pelo menos por hora, não é ter bom senso. Não mesmo.
— Concordo — comentou Cecília —, e, apesar de isso me dar um frio na barriga bem incômodo, tenho vontade de esclarecer toda essa história da garota Sara de uma vez. Não há nada a perder, não pra mim; algo muito significativo, realmente não há.
— Sabemos que isso poderá ser arriscado — falou Manuela—, mas eu sinto que as intenções de Jóhann e Isadora, no fundo, são boas.
— Eu conheço aqueles dois a um tempo considerável — interveio Luiz —, creio que as intenções de ambos são boas, mas mesmo assim, devemos estar sempre com um pé atrás... Afinal, eles possuem poderes incompreensíveis e podem mudar de temperamento repentinamente: nessas horas, quem paga o pato somos nós.
Marina só observava, concordando (ou não!) com a cabeça a cada comentário feito. Aguardava o momento-chave para soltar a informação extra que possuía — talvez fosse um blefe; aliás, talvez ela estivesse blefando o tempo todo, desde o início; talvez ela não passasse de uma vigaristazinha querendo se aproveitar da indecisão humana para se sobressair; especulando ainda mais além, talvez ela fosse um ser sobre-humano assim como Jóhann e Isadora, com objetivos, razões e motivações duvidosas. Talvez.
A discussão continuava num ritmo quase frenético. Dante expressava suas opiniões de uma maneira raramente vista antes. Estava inspirado. De repente, quando o assuntou começou a se desvirtuar e parecer tomar um rumo mais descontraído, Marina os interrompeu, vendo ali a ocasião perfeita pela qual esperava. Olhou nos olhos de cada um, aqueles olhos castanho-claros tão especiais, tão infinitos.... Suspirou meigamente e começou a falar num tom suave, intrinsecamente vivaz e quase melancólico:
— Hum! Hum! Legal! Vocês com certeza já decidiram o futuro de vocês. Vão salvar a Sara, não é? Eu já imaginava que chegariam nesse consenso. Certo, certo. Vou olhar bem pra cada um de vocês aqui e dizer, do fundo do meu coração: vai ser uma experiência inesquecível! Mas falta um detalhe, só um. Sim, sim. A coisa toda não é só isso que parece. Toda essa historinha da busca por Sara não é mentira, mas eu acho que eu poderia chamar ela de pretexto; sim, sim, um pretexto praquele diretor Leon e sua agência misteriosa nos vigiarem bem debaixo dos narizes deles. Pois é. O que eles realmente querem não é salvar Sara. Quer dizer: não são só eles que estão atrás de Sara e atrás de nós. Existem outras agências, de fato, mas é melhor detalhá-las uma a uma em outra oportunidade. Eu faço parte integral de uma delas — mas não se preocupem, eu não tenho esses “poderes”, pelo menos acredito que não, até porque eu não preciso deles. As citadas agências, na realidade, se preocupam com um fator comum: a dominação do planeta através de ameaças bioterroristas, ao mesmo tempo em que querem usar estas ameaças para forçar as pessoas a cuidarem dos problemas ambientais mais remotos — e, não, eu não estou falando de nenhum problema específico, até porque isto seria uma horrível generalização. Tirando esse fator comum, as agências possuem vários pontos divergentes, e, comparando a minha agência com a de Leon, talvez o mais importante deles seja a questão relacionada à observação humana. É uma história muito macabra. Existe um boato sobre mutações genéticas e lavagens cerebrais rondando a agência de Leon, mas eu não posso afirmar nada. Eu só posso afirmar uma coisa, por enquanto: eu sou uma espiã dentro da agência de Leon.
Dante foi o primeiro a questioná-la, depois daquele tiroteio de palavras bizarras e concepções questionáveis:
— Marina, me responda uma coisa: algumas dessas agências têm nome, por acaso?
— Sim.
— E qual o nome da agência de Leon?
Eve. Não sei o significado, mas o nome é esse.
— Sei, sei... E o nome da sua agência?
Delphia. Eu sei que parece uma grande maluquice, mas é verdade. Por hora não dá pra explicar cada detalhe, desde a origem (e o motivo da origem) dessas agências, mas vocês ainda vão ter a chance de ouvir. O mais importante é que vocês tenham em mente o seguinte: eles podem estar nos observando agora; eles podem estar nos observando o tempo todo. Eles querem algo de nós, não sei ao certo o quê. Sara é um pretexto. Guardem isso na cabeça de vocês.
Um riso ecoava dentro de Marina. Um riso puro de quem conseguia entortar a mente dos outros. Se era um riso de mentira, ou de enganação, não havia como saber. Mas tudo havia ficado anormalmente torto. E as mentes dos jovens ali — inclusive a dela —, estavam bem tortas.

domingo, 17 de agosto de 2008

Capítulo 12 - O Conto do Crepúsculo

"Em tempos imemoriais e, talvez, não pertencentes ao contexto geral desta narrativa, vivi momentos muito valiosos. Muitos já amaram; inúmeros já citaram tal tema em incontáveis circunstâncias; mas esta não é uma história de amor, é uma história de inquietação, de olhares anônimos, de repetições dolorosas, de paciências torturantes, mas não deixa de ser uma história definida como a queda da razão diante da emoção... E, neste caso, tal queda proporcionou um indescritível poder de causar sofrimento. Afirmo-lhes isso, pois, um ser humano sofre neste instante. Palavras provavelmente não chegarão perto de toda a síntese dos acontecimentos. Eu estava apodrecendo por culpa própria, envolvido por uma armadura de energias duvidosas, mas isto não me impediu de deitar meus olhos nela, naquela garota, como se o mundo fosse maior, mais livre, mais independente, mais carismático, mais perto do fim. Olhei bem para ela: era uma doce face construída com louvor, com sutileza, com capacidade absurda de prender a atenção de um indivíduo do sexo masculino — e talvez de alguns do sexo feminino também. Primeiro, me pareceu de estatura baixa, depois vi as curvas sinuosas e gráceis do seu corpo, o que me fez, suspeitosamente, achar que não teria como me esquecer dela com alguma facilidade. Porém, eram o rosto e os cabelos os que mais me sugavam mentalmente; era possível que, em um milhão de mulheres no mundo, não se encontraria um ser cósmico e distinto como aquela moça, e como os cabelos dela, isto é, os cabelos em conjunto com aquele seu rosto soberbo; digo, só um tempo depois, na conformidade real das coisas, eu viria a perceber que ela se tornaria evidentemente inolvidável para mim.

Aquele era o primeiro dia de aula de muitos outros que viriam dentro daquele ambiente, sempre às tardes... Aquelas tardes estranhas, às vezes escuras, às vezes claras, às vezes as duas coisas, mas, muitas vezes, desgraçadamente melancólicas também; talvez isso me gerasse inspiração, mas ao mesmo tempo, estupidez, insegurança, medo — ou, na conclusão de fatores tão fúnebres: uma sensação de incompatibilidade com o mundo. Sim, sim, era sofrível, mas talvez a culpa disso tudo estivesse em atos passados, em perdas de oportunidades, em falta de habilidade nos momentos mais cruciais...! Mas é melhor que joguemos a subjectividade no lixo agora, pois a história que se segue não é nenhum pouco feliz — ao menos no seu final, com certeza não.

A vez que falei com ela foi numa das tardes claras: lembro-me como se fosse hoje, a vivacidade de sua fala, o balançar dos cabelos, e, enquanto nos perdíamos em diálogos triviais, eu já sabia que, a partir dali, uma bola de neve psicológica começaria a rolar. Era o seguinte: entre as aulas insuportáveis, o peso da rotina e o cansaço preguiçoso, teria de haver algo que pudesse deixar tudo mais leve, mais admirável — algo que me desse mais vontade de estar lá. E esse algo, como eu tinha começado a constatar, era ela.

— Você gosta realmente dela? — perguntou Carlos à mim, numa das tardes mais escuras.

— Eu não sei. Eu sinceramente não sei, mas prefiro dizer que sim. Esquecê-la talvez seja fácil, mas se eu o fizer, nada mais será interessante aqui.

— Ela tem uma relação muito boa com o namorado dela, você sabe. O mais provável de se acontecer numa situação dessas é você sair com o coração esquartejado!

Enquanto pensava e repensava sobre os conselhos de Carlos, eu ainda insistia em observá-la ininterruptamente. Afogado na obviedade da minha razão e na teimosia das minhas emoções, deixei o tempo passar. O frio no estômago foi ficando cada vez mais freqüente e incômodo, na mesma proporção em que a vontade de ir vê-la aumentava. Era um amor impossível — se é que algo assim existe —, mas eu sentia uma mínima parcela de esperança brotar dentro da minha mente, porque, com uma anormal perspicácia, minhas capacidades racionais iam sendo arrastadas para o fundo de um poço que poderia não ter fim.

Pensamentos maldosos e pesadelos desesperadores invadiam-me vez ou outra, o pânico me dominava numa quase total escuridão, e uma lucidez existencial me corroía por dentro: se a vida eterna existir, como alguém conseguirá agüentar a si mesmo até sempre? E se ela não existir, a não-existência deve realmente ser temida? Tudo era um beco sem saída, uma espera por nada, em qualquer aspecto ou ângulo que eu podia tentar visualizar; e ela, a moça, de repente, aparecia no meio de tudo isso, me fazendo sofrer, mas era um sofrimento suportável até então. Na proximidade com ela, a resplandecência vinha, mesmo que houvesse a impossibilidade de uma relação mais profunda.

Num fim de semana árduo e cansativo, eu desejei. Desejei poder tê-la mais do que tudo, mais do que qualquer pessoa ou coisa, mas não tê-la como um objeto, apenas desejei poder ficar junto com ela durante o tempo necessário para que pudesse ter um valor mais memorável para mim. O sol das tardes vinham à mim em coreografia com os ventos das tardes frias, mas a melancolia era o número predominante: juntei tudo e todos dentro da minha consciência e pedi, com certo pesar por imaginar a existência do egoísmo naquele ato, que o desejo se realizasse cem mil vezes mais rápido do que o normal, se isso fosse realmente algo possível de acontecer. E eu comecei a esperar.

Mas a espera não foi tão longa. Tudo durou duas semanas. Minha auto-confiança renasceu das cinzas mais cambaleantes possíveis, onde, seguidamente, eu era remetido a uma seqüência quase cronológica de sensações de nostalgia que haviam me marcado no passado de forma indefinida, mas que, talvez por minha própria desatenção, haviam sumido da minha memória. E, num dos dias em que essas nostalgias ocorriam, a moça chegou, à tarde — e ela não se sentia muito bem. Ela não ficou muito tempo ali: foi embora no intervalo, enquanto eu ficava ali, numa aflição torta, já que no fundo eu queria acreditar que ela, agora tão frágil, vulnerável e fraca, fosse, no dia seguinte, adentrar naquela sala tão saudável como nunca. Mas quatro dias se passaram, sem que ela aparecesse. No quinto dia, recebendo a notícia mais dilacerante de toda minha existência, eu quis morrer, pois, sim, ela estava... Morta.

— Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!

Tudo havia desabado, todas as minhas esperanças, todas as minhas crenças, todas as teorias em que eu acreditava, tudo que pudesse servir como uma base para a minha manutenção estava desmoronando violentamente.

Mas, com o tempo, veio a calma, e com ela eu vi uma hipótese. Sozinho, num ônibus, sem rumo ou objetivo algum, pensei: 'O desejo que fiz, aparentemente, fez com que as coisas acontecessem ao contrário... Mas, há uma intuição tola dentro de mim, uma intuição que sempre esteve aqui. Eu não sei se posso acreditar em vida após à morte, reencarnação ou coisas do tipo, mas se o desejo for realmente se realizar o mais rápido possível, eu preciso morrer logo... Preciso morrer para ter você nos meus braços, preciso morrer para poder ver seus olhos pungentes, preciso morrer para acariciar seus cabelos muito cacheados, preciso morrer para poder, no mínimo, vê-la novamente... Marina!'. E, nada mais fazia diferença. Eu aguardava. Apenas aguardava. A morte viria — e eu não tinha tanta pressa, já que eu não vivia mais à mercê do tempo."



Jorge Santos Machado, São Paulo, Outubro de 2008

sábado, 9 de agosto de 2008

Capítulo 11 - Aurora - Parte Final

— Espere um momento! — disse Manuela — Se nós cinco somos as crianças que ela devia ter visto para que pudesse se livrar da doença, e ela provavelmente já viu quatro de nós, só nos resta irmos até ela e tirar isso à limpo de uma vez por todas!
Jóhann silenciou-se. Sim, era verdade, mas dentro de todo esse cenário bizarro, faltavam-lhe informações.
— Escute, Manuela. As coisas não são tão fáceis assim. Por mais que sejamos algo que se aproxima de deuses, Isadora e eu infelizmente não sabemos qual é a localização atual de Sara, nem mesmo qual de vocês cinco é o indivíduo que faltou ser visto por ela. Só que as explicações maiores ainda virão, até mesmo para nós dois. O diretor está chegando.
Todos se entreolharam, inquietos. O tal diretor... Se Jóhann e Isadora eram quase deuses, o que poderia ser dito sobre esse diretor? Quer dizer: de onde haviam saído essas criaturas sobre-humanas que, repentinamente, vinham com histórias sobre acontecimentos nada comuns, como se a realidade fosse cheia dessas coisas totalmente anormais? Pois, se para quase cem por cento das pessoas no mundo a vida é uma chatice, o que faria Manuela, Dante, Marina, Cecília e Luiz serem seres tão importantes ao ponto de que essas coisas incríveis viessem a acontecer justamente com eles? Essas coisas simplesmente não ocorrem na vida real. De fato, não.
Jóhann se levantou e foi à cozinha. Isadora foi fumar na janela. Os cinco jovens estavam inicialmente quietos, mas Luiz tentou começar uma conversa:
— Ei... O que vocês acham de tudo isso? Nessas horas a gente fica tão surpreendido que nem dá pra esboçar uma reação direito. Pelo menos pra mim é assim.
— É evidentemente estranho — comentou Marina —, mas já que estamos nessa situação, não há como continuar sendo incrédulo quanto à isso, a não ser que você queira acreditar que está sofrendo de esquizofrenia.
Dante riu:
— Sim, e seria muito improvável que nós cinco estivéssemos sofrendo disso ao mesmo tempo. O jeito é aceitar a realidade absurda que surge e seguir em frente. Se bem que, creio eu, com o tempo, qualquer coisa no mundo acaba ficando monótona... Por isso que o ser humano tenta variar tanto a sua rotina.
— Realmente... — falou Cecília, ficando de pé e sentando-se na poltrona antes ocupada por Jóhann — Não dá pra sair correndo de medo. Mesmo assim, tudo é possível, então a possibilidade deles serem charlatães é totalmente concebível, não?
Manuela, para a surpresa de todos, começou a chorar com um tom alto de angústia.
— Eu... Eu sei que a culpa é minha! Só pode ser! Eu não me lembro de ter visto nenhuma garota como essa tal Sara no dia do aniversário de Marina! A criança que falta só pode ser eu!
Todos foram na direção dela para consolá-la.
— Mas, Manu... — disse Cecília, em tom brando — Nem eu me lembro. Pode ser qualquer um de nós, ora. Sara estava olhando para muitas crianças ao mesmo tempo. A única que Jóhann disse que certamente a viu foi Marina, e ninguém mais. Nada é certo ainda, não se culpe antes da hora.
A garota ruiva levantou o rosto cheio de lágrimas e disse, em meio a soluços:
— Mesmo assim... Ugh!... Eu sei que sou eu... Eu posso sentir! — e desabou em lágrimas pesadas.


Do lado de fora começava a chover. O ambiente daquela casa externamente branca se transmutava em algo cada vez mais enlevante. O cheiro de vapores desconhecidos invadiam os sentidos dos cinco jovens. Uma música começava a tocar da cozinha: era Canon em Ré Maior, de Johann Pachelbel, um dos compositores favoritos de Jóhann, tanto que ambos possuíam até o mesmo nome. Já se passavam das cinco horas da tarde. O dia estava ficando cada vez mais cinzento.
Na sala, Dante resolveu tentar dialogar com Manuela, mesmo depois de ambos terem "cortado relações" no episódio do encontro inesperado no ônibus.
— Você imaginava que, mesmo depois de termos decidido dar um tempo, íamos estar aqui, um ao lado do outro, dentro de toda essa maluquice?
A garota, pensativa, falou, enquanto apertava as mãos sobre os joelhos:
— Eu não consigo entender, Dante... Tem momentos em que eu sinto que errei ao ter te falado tudo aquilo, e tem momentos em que eu me sinto bem por me sentir livre de você. É tudo muito confuso, eu sou uma pessoa confusa, você sabe. Uuufff! Viver não é fácil, essa é a verdade.
— Entendo. Mas não pense que isso acontece só com você. Todo mundo tem seus momentos de erros e acertos, de certezas e incertezas, de achar que foi compreendido e de achar que não foi. O mundo se resume à isso. Não, não, acho que não, o mundo é mais que isso... Mas a verdade mesmo é que não passamos de seres humanos. Agora, aqueles dois, Isadora e Jóhann, bom, eu francamente fico sem palavras diante de coisas além da minha compreensão.
— Sei lá... Eu ainda estou esperando pelo momento em que eles irão parar e dizer que tudo isso não passa de uma grande brincadeira de mal gosto...
Os dois olharam-se, rindo.
Instantes depois, Jóhann e Isadora voltavam à sala. A chuva continuava cada vez mais forte do lado de fora.
— Ele já está aqui. — sussurrou Jóhann.
A campainha tocou em seguida. Isadora saiu para abrir o portão. Lá fora, Leon — o velho esquisito, com longos cabelos grisalhos e a espiral na testa — encontrava-se cercado por quatro homens inteiramente vestidos de branco, talvez fossem guarda-costas ou algo do tipo. Leon e os quatro homens foram conduzidos por Isadora para dentro da residência.
Quando Dante viu o homem da espiral na testa, assustou-se: então, de fato, tudo estava relacionado. Leon, homem que havia aparecido em seus sonhos era realmente o tal "diretor".
— Boa tarde à todos. Meu nome é Leon. Sou o diretor da agência que recruta indivíduos como Isadora e Jóhann, que são atualmente os únicos disponíveis para esta missão. Foi difícil chegar aqui, Ivan não sabia de fato qual era o caminho. Na verdade, já podíamos ter advindo aqui muito antes, mas eu tenho minhas tendências de querer agir como um ser humano normal. Creio que Jóhann já explicou-lhes tudo. A informação adicional que eu trago, no entanto, é vaga, mas mesmo assim nos ajudará relevantemente. Aparentemente, Sara se encontra em uma região na Europa entre a Bélgica e a Holanda. De acordo com a fonte, ela está vivendo — dormindo — numa mansão, onde mora com uma velha senhora que toma conta dela com muito carinho. É estranho, pois, como é possível que saibamos como é o lugar e quem são as pessoas que vivem nele sem sabermos exatamente a localização? É que, como eu poderia dizer, a minha fonte é um tanto quanto desconfiada e vive mudando de opinião e temperamento. Mas, isso não tem importância. A determinação fará com que encontremos quaisquer coisas que queiramos. É bom partirmos o quanto antes. A cada minuto que se passa, Sara corre o risco de entrar em colapso onírico e isto acarretará em graves problemas futuros para ela. É triste, mas eu me culpo diariamente por não ter me concentrado em ajudá-la antes, mas isto seria impossível, o momento de vocês se unirem é este, agora, e nenhum outro. Vamos, meus jovens. Levantem-se. Está na hora.
Surpresos, todos se levantaram — a coisa ficava cada vez mais estranha e incompreensível. Leon, seus homens e Isadora saíram, seguidos pelos cinco jovens que andavam agrupados sob a chuva; Jóhann foi o último a sair, fechando a porta atrás de si. Olhando para os jovens ao mesmo tempo em que esboçava um sutil sorriso no rosto, Leon apontou com a mão para os veículos estacionados do lado de fora do portão: além do Fiat Uno da mãe de Cecília, podia-se ver uma Van em estado de conservação questionável e, logo à frente dela, havia uma lustrosa Ferrari Enzo prateada que parecia mais e mais atraente à cada gota de chuva que lhe atingia.
Apesar de toda a continuidade dos acontecimentos, havia restado uma pergunta gritante no ar: onde estariam os verdadeiros donos daquela casa, os amigos de Cecília? Que tipo de ocorrência teria feito com que eles tivessem eventualmente abdicado da posse da casa para concederem-na a indivíduos estranhos e desconhecidos para que esses realizassem uma reunião sobre problemas sobre-humanos? Essa questão, de repente, pareceu não importar mais nem para Cecília, nem para nenhum dos cinco jovens ali. Talvez ninguém precisasse saber. Talvez isso não fosse fazer a mínima diferença dali para frente. Fingir que nada aconteceu era mais fácil, mais coerente, mais saudável... Mas provavelmente não era a coisa certa a se fazer.

sábado, 2 de agosto de 2008

Capítulo 10 - Aurora - Parte 2

A angústia vinha, dando cambalhotas: Manuela começava a se sentir cada vez mais exposta ali, diante de Jóhann e Isadora — e o islandês prosseguia:
— Percebo agora, com saudável clareza, que realmente fizemos a escolha certa. É lógico que, ao mesmo tempo que todo ser humano é igual ao outro, cada um é diferente do outro ao mesmo tempo e, desse ponto de vista, Marina é uma garota inteligentíssima e nos ajudará nas investigações.
— Que investigações? — interrogou Cecília.
— Haha! Será que você não poderia ser um pouco mais paciente, minha jovem? Eu chegarei nesta parte. Aliás, já que não aguenta de tanta curiosidade, vou falar de você. Cecília: uma dama peculiar, mas que acaba soando quase como uma coadjuvante. Infelizmente. Mas você ainda terá incontáveis oportunidades para brilhar. Sua capacidade intelectual é elevada, convenhamos, você também nos auxiliará bastante daqui para frente. Luiz e Dante também estão no mesmo patamar, então, por enquanto, deixaremos para falar sobre ambos mais à frente. Agora, você — e apontou para Manuela —, você é tão importante quanto Marina. Você, bela Manuela, representa um item de imensa importância para nós, um item indispensável. Manuela... Você representa... A emoção humana.
Manuela corou. Todos a observavam com sorrisos gentis.
— C-como assim? — perguntou ela, timidamente.
— Você é um mar de sentimentos, Manuela. Você é uma estrada, uma estrada onde quem a percorre sente o mais dinâmico turbilhão de sensações. Dante que o diga. Soma-se isto com seus volúveis cabelos vermelhos e o que temos? Uma estrada vermelha. Uma sinuosa estrada vermelha. Imagino se neste mundo possa existir alguém que seja uma fusão do seu valor sentimental com o valor intelectual de Marina. Mas a existência de um ser desses é muito improvável.
Dante, inesperadamente, se levantou do sofá e, com tom desafiador na voz, disse:
— Você está errado! Manuela não é só uma "estrada vermelha de sentimentos"! Ela é tão ou mais sábia do que qualquer um aqui, pois ela tem a árdua tarefa de ter que lidar com seu potencial emocional. Todo mundo sabe que, quando se trata de sentimentos, a barra é indiscutivelmente pesada. Eu tenho certeza de que ela, de fato, concorda comigo, já que poucos param pra pensar sobre isso.
A garota olhou para ele com carinho. O coração de Dante disparou. Jóhann, rindo mais uma vez, argumentou:
— Parabéns pela audaz observação, senhor Dante, estou vendo que não vou poder subestimar nenhum de vocês aqui. Mas vamos parar com essa conversa assaz melosa e vamos começar a falar do que importa. Preciso que ouçam com atenção e seriedade. Eu vou falar sobre um acontecimento. Tal acontecimento está intrinsecamente relacionado à vocês cinco. Foi há nove anos atrás... Na manhã do dia 29 de Agosto de 1999, dia do aniversário de Marina, foi quando, pela primeira vez, por ordem de nosso diretor, Isadora e eu pusemos os pés em solo brasileiro. Imediatamente, sentimos o peso da diversidade deste país, mas não tínhamos tempo pra pensar à respeito. Tínhamos que nos concentrar numa certa pessoa que, digamos, se encaixaria como um sexto integrante no grupo de vocês, mas isso, na prática, era algo impossível de ocorrer, já que a morte dela serviu como ponto principal para que a relação que existe entre vocês nascesse; em outras palavras, se ela não tivesse morrido, vocês cinco não estariam juntos aqui hoje. Seu nome era Sara. Era uma garota encantadora, belíssima, com cabelos tão dourados que cheguei a entrar em êxtase quando a vi. Lá estava ela: sozinha em casa, abandonada pela família, deitada na cama de seu quarto esperando as energias voltarem. Ela tinha uma doença bastante incomum: sentia contrações emocionais e mentais em todas as ocorrências de sua vida que chegariam a estar relacionadas com seus sonhos posteriormente. Compreenderam? Não se tratavam de sonhos premonitórios, mas sim o contrário, através dessas contrações, ela poderia perceber com "quem" ou com "o quê" os seus sonhos seriam. Mas não era sempre assim, pois outros tipos de sonhos assolavam sua individualidade consciente. Eram sonhos sempre macabros ou tristes e, segundo ela, iam sugando cada vez mais as suas energias vitais. Tal síndrome (sim, acho que posso chamar de síndrome, não?) foi afastando lentamente as pessoas que estavam ao seu redor, até mesmo os próprios pais, que na realidade eram adotivos e não aguentavam mais viver naquela situação, já que as contrações da garota se tornavam cada vez mais freqüentes. No fim, o que restou foi somente ela com ela mesma, mais debilitada do que nunca, mas ainda assim era a coisa mais bela que eu já havia visto. Quando Isadora e eu entramos na humilde casa da garota sem ao menos bater na porta, ela não ficou surpresa. Parecia que nos esperava. Ela se sentou na cama e com muito esforço deu um sorriso incrivelmente meigo... Prosseguimos, explicando à ela o motivo de estarmos ali: iríamos acabar com as contrações e com os sonhos que a faziam sofrer. Sim, aquela era a nossa missão desde o início. De acordo com as informações dadas pelo nosso diretor, a única maneira de curá-la seria no momento em que encontrasse cinco pessoas específicas e sonhasse com todas elas de uma vez só. Se tal feito fosse realizado, ela acordaria no dia seguinte totalmente livre das tais contrações. O dia 29 de Agosto daquele ano, no entanto, era o melhor dia para a concretização da cura: estas cinco pessoas, na época, crianças, — como vocês já imaginam, são vocês cinco aqui presentes, Marina, Dante, Luiz, Manuela e Cecília — estariam juntas na sua festa de aniversário de nove anos, Marina, e, tendo conhecimento de tal fato, Isadora e eu nos posicionamos de modo a ir até a tal festa de aniversário, apresentar Sara às cinco crianças, ter as contrações, para que, finalmente, pudesse sonhar com elas e se livrar de sua doença. Lembro-me até hoje do inesquecível vestido que Isadora havia dado à Sara... Era branco, simples, mas tinha uma aparência leve, onírica... Ela parecia um anjo. Lá estávamos nós na festa. Deixamos Sara sentada numa confortável cadeira no vasto quintal gramado. Crianças e adultos corriam pra lá e pra cá. Pedimos que Sara observasse cada detalhe com atenção, para que pudesse visualisar as crianças o quanto antes. Teriam que ser cinco contrações, e a primeira veio logo, no momento exato em que Marina e sua mãe vieram em nossa direção. A cena foi chocante — você se lembra, Marina?
Marina, então, concentrando-se, lembrou-se de algumas cenas vagas:
— Sim, mas não há nada muito claro na minha mente. Só me lembro de uma correria, minha mãe me puxou para trás, gritando para que eu fosse ir brincar com as outras crianças. O resto é muito vago.
— Entendo. Bom, como eu poderia dizer, os efeitos das contrações eram desconhecidos por mim e por Isadora, e aquele momento, mesmo para nós, foi tão marcante quanto triste: quando Sara fixou os olhos em Marina, pude sentir os tremores dentro da garota. Ela lançou-se ao chão, colocando as mãos na cabeça, gritando e chorando com uma intensidade medonha. Eu, saindo de um inicial estado de perplexidade, abracei-a, tentando acalmá-la, sem muito sucesso. Só depois de cerca de quinze minutos que ela conseguiu se acalmar. E a cena voltou a se repetir mais três vezes. Faltava apenas mais uma. Nós esperamos, mas a quinta contração não veio, o que levou Isadora e eu a imaginarmos que ela poderia ter visto duas crianças ao mesmo tempo e tido duas contrações simultâneas. Resolvemos dar uma volta pelo quintal gramado para que Sara pudesse ver cada uma das crianças dali. Naquela hora, a nossa falta de onisciência foi crucial. À noite, enqüanto dormia e sonhava com apenas quatro de vocês, Sara morreu. Ou melhor: não acordou, pois, ao contrário do que vocês podem pensar, ela continua, até hoje, no mundo dos sonhos, esperando pelo dia em que a quinta criança aparecerá para, enfim, libertá-la.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Capítulo 9 - Aurora - Parte 1

Três e quarenta da tarde, sexta-feira. O dia estava exaustivamente quente. Já haviam se passado duas semanas desde que Manuela e Dante haviam se separado, no dia 24 de Junho.
— É aqui! — exclamou Cecília ao parar o Fiat Uno que dirigia na frente da (razoavelmente) grande casa de seus amigos na pequena cidadezinha próxima de Itu: Cabreúva — É aqui que eles moram, Manu!
— Até que enfim! — comentou Manuela — Tá certo que eu não sei dirigir, mas você no volante é uma perdição. Não vou falar que foi graças à Deus que chegamos à salvo, mas acho que, pelo menos dessa vez, ele deu uma ajudinha!
— Haha! Você é mesmo uma mal-agradecida!
— Estou brincando! Só brincando, Cecília!
Ambas desceram do veículo. Abrindo o porta-malas semi-emperrado, Cecília tirou uma grande mochila e pôs nas costas. Manuela apanhou uma mala de tamanho mediano e que, de quebra, tinha rodinhas. As duas encaminharam-se até o grandioso portão de entrada (que era grande, mas com uma certa "aura" de simplicidade — e tocaram a campainha. Esperaram. Manuela olhou para o sol escaldante; Cecília observava Manuela e via o suor a escorrer quase que sensualmente pelo rosto da amiga. "Ela é tão... Apreciável!", pensou Cecília, a admirar a beleza da garota ruiva mesmo num momento como aquele. Manuela baixou os olhos e encontrou os de Cecília a observá-la tal qual estivesse hipnotizada.
— O que... foi? — perguntou Manuela.
— N-nada! — falou Cecília, corando e desviando o olhar imediatamente. Virou-se para a casa e pôde ver alguém a atravessar o vasto quintal gramado vindo em direção ao portão. Era um homem franzino e misterioso, vinha apoiando-se numa bengala e, mesmo naquele calor que beirava o título de insuportável, usava um chamativo sobretudo marrom.
— Ele é... Um dos seus amigos? — perguntou Manuela à Cecília.
A outra, muito séria, respondeu:
— Não. Com certeza não.
O homem aproximou-se do portão e abriu-o. Olhou para as duas belas garotas e sorriu.
— Sejam bem-vindas. Nós estávamos esperando-as.
Cecília, confusa, não sabia exatamente o que perguntar. Manuela, então, foi a primeira a falar:
— O senhor, por um acaso, mora aqui ou é parente de alguém?
— No momento, estou morando aqui. Chamo-me Jóhann. É um prazer vê-las depois de tanto tempo. Sem mais delongas, eu apreciaria muito se as duas moças entrassem o mais rápido possível. Lá dentro, garanto-lhes, é muito mais seguro do que aqui fora.
Cecília tentou se lembrar de quando havia sido a vez em que havia visto este homem, mas tinha uma certeza quase absoluta de que jamais o vira antes. Ele virou-se e começou a caminhar freneticamente em direção à casa. As duas garotas o seguiram. Tratava-se de uma construção peculiar: provavelmente com uma área de cem metros quadrados; era alta, com dois andares, telhado cinza, as paredes de fora pintadas impecavelmente de branco: era algo externamente encantador, definitivamente. Jóhann abriu a porta: logo de cara, via-se a sala de estar — e ali encontravam-se um consideráveis pessoas.
— Creio que vocês duas... — começou a falar Jóhann — Já conhecem alguns desses indivíduos.
E os indivíduos eram quatro: Isadora, Luiz, Dante e Marina. Estavam todos ali confortavelmente sentados no espaçoso sofá branco. E não havia nenhum sinal dos verdadeiros donos da casa, os amigos de Cecília.
— Eu não estou entendendo nada. — disse Cecília — O que eles estão fazendo aqui? Onde estão as pessoas que moram nessa casa realmente?
Uma risada cômica começou a irromper os ares. Isadora levantara-se do sofá e ria, ria profundamente, enquanto fumava um cigarro. Foi até Cecília e parou diante dela.
— É muito divertido ver quando as pessoas ficam assim perdidas, sem saber de nada. Eu não consigo evitar, eu rio, rio como se tivesse ouvindo a piada mais engraçada do mundo. Mas você não merece ser motivo de piada, pequena Cecília. Você merece saber. Os seus amigos não moram mais aqui.
— Como assim não moram mais? Eu liguei pra cá pouco tempo antes de sair de casa. O Mário atendeu e me disse que estariam esperando exactamente aqui! Eu não sei o que está acontecendo, mas isso não está me cheirando nada bem.
— Hihi! Haha! Hahahaha! Eu não devia rir num momento desse, não devia! Até porque a verdade é dura. Eles estão mortos, Cecília. Mortos!
Cecília foi bombardeada; não acreditava naquilo, mas sentia que poderia muito bem ser verdade, já que estava frente a frente com pessoas que não deveriam estar ali.
— Não é possível... Isso não aconteceu!
— Ninguém morreu. — falou Jóhann — Eu vou explicar à vocês tudo que vocês vão precisar saber daqui pra frente.
Jóhann, assumindo as rédeas da situação, pediu que Cecília e Manuela se sentassem. Ao mesmo tempo lançou um olhar repreendedor à Isadora. Um silêncio incômodo perdurou naquela sala durante dois minutos. Jóhann se sentou numa poltrona, virada de frente para o sofá branco onde todos estavam sentados. Isadora pegou um banquinho e posicionou-se ao lado do islandês. Era hora das explicações. Todas elas.
— Antes de tudo — iniciou Jóhann — Gostaria de apresentar às duas garotas, um de nossos pupilos, Luiz — e apontou para o rapaz de cabelos compridos — Luiz, essas são Cecília e Manuela. Vamos aos esclarecimentos. Comecemos pela jovem Marina que já sabe de praticamente tudo, e que, aliás, deve ser aplaudida aqui devido à sua atuação no encontro que realizou com as outras duas moças aqui presentes no Terminal Bandeira. Aquilo foi brilhante, afinal, dizer que havia fugido de casa por motivos familiares e ser convincente neste argumento da maneira como você foi (já que os reais motivos eram outros) é uma tarefa que apresenta certa dificuldade para que seja realizada.

Jóhann referia-se ao encontro marcado por Marina no dia 24 de Junho, dia em que havia sido vista por Cecília e Manuela (e que também havia sido raptada, ao anoitecer, por Jóhann e Isadora), deixando apenas a metade de uma foto, com o local, o dia e o horário do encontro: às 17hs, no Terminal Bandeira, seis dias após o ocorrido. E, de fato, Manuela e Cecília compareceram no dia marcado — no caso, era 30 de Junho. Porém, esse acontecimento será mais detalhadamente tratado nos próximos capítulos.

— O que podemos dizer da jovem Marina? — continuou Jóhann — Ela é a paixão-mor de Isadora, e, como se não bastasse, é a terceira pessoa mais inteligente aqui presente (já que eu e Isadora somos o primeiro e o segundo lugar, respectivamente). Ela chamou nossa atenção pela primeira vez no dia de seu aniversário de nove anos; de lá para cá, não desgrudamos mais os olhos dela. A maioria aqui deve se perguntar como nós iríamos prestar atenção nela sem que a própria percebesse. É simples. Eu e Isadora somos deuses dentro dessa realidade inconstante. Talvez não deuses completos, já que nos falta a onisciência, mas temos uma quase completa onipresença e uma onipotência bastante desenvolvida — sim, meus caros, nós podemos fazer quase tudo. Voltando...
— Espera aí...! — interrompeu Manuela — Você quer que a gente acredite nisso de verdade? Que palhaçada é essa agora?
— Eu posso mostrar. Talvez não funcione da maneira mais eficiente possível, mas eu posso mostrar.
— Estou olhando.
Antes que Manuela pudesse piscar os olhos, Jóhann havia sumido da poltrona e estava, agora, sentado ao lado dela. Outro instante depois, estava de volta à poltrona. Boquiaberta, a garota não tinha mais como negar. Sentia medo agora, e talvez por isso, preferiu esperar que o homem terminasse as explanações.
— Creio que lhe convenci. A você e à sua amiga Cecília. Os demais já estão devidamente à par no que diz respeito às nossas identidades. Eu poderia retornar à minha fala agora?
— S-sim.
— Perfeito. Bom, como eu ia dizendo anteriormente... Isadora, será que você se lembra... Onde eu estava mesmo?!

sábado, 19 de julho de 2008

Capítulo 8 - O Sonho

Na triste madrugada do vigésimo quarto dia do mês de Junho daquele ano, segurando uma garrafa de vodka na mão e olhando fixamente para o velho prédio do colégio estadual onde havia estudado no ensino médio, Dante, horrorizado por saber que teria que aturar a si mesmo o resto da vida, estava quase embriagado.
"Que merda! Que merda! Será que a culpa é minha? Será que eu mereço que a culpa seja minha?" — e foram-se mais alguns goles de vodka goela abaixo. Dante começou a andar, cambaleante e desordenado, se segurando nas grades que cercavam o colégio, bebendo vodka a cada intervalo de quinze segundos, sem nada na cabeça; não, na verdade havia uma única coisa em sua mente: Manuela, a ruiva. Já nem importava-se mais com a morte do pai. Só a vermelhidão de Manuela tomava-lhe conta do pensamento. Tropeçando em alguma coisa, o garoto foi ao chão. E alguma poucas lágrimas foram também.
Com esforço, ficou de pé mais uma vez. Seu estômago começou a revirar, a ânsia veio e o vômito saiu. Mais lágrimas foram junto. "Não tenho com quem recorrer! Não tenho com quem interagir!" Sentou-se no chão, de costas para a grade. Deu uma última boa golada de vodka e levantou a cabeça para o céu. "O poço ainda pode ser mais fundo... Não é?" E adormeceu ali instantaneamente.
Assim, o jovem Dante teve o sonho, o sonho que mudaria sua vida. Ele via-se numa vasta e interminável superfície branca — sobre a sua cabeça, um imenso céu num tom laranja-claro; subitamente, uma mão emergiu do solo alvo e, um instante depois, um corpo inteiro surgia diante de Dante. Era um velho esquisito — nem bem vestido, nem mal vestido — , com longos cabelos grisalhos, uma face estática e peculiar, dono de um considerável porte físico, devia ter por volta de um metro e oitenta e cinco de altura. No entanto, o que mais chamava a atenção nele era a estranha marca ou cicatriz em forma tortusamente espiral que tinha na testa.
— Olá! — disse o velho — Meu nome é Leon. Talvez você não faça idéia de quantas pessoas existam no mundo. Talvez você não faça idéia do tamanho de seu potencial. Talvez você não faça idéia de como seja a morte. Mas é importante que você comece a pensar sobre essas coisas.
Leon colocou as mãos em cima dos ombros de Dante.
— Por... quê? — perguntou o garoto.
O velho, dessa vez tirando as mãos que estavam sobre os ombros de Dante, riu. Seguidamente, proferiu:
— Isto não é um sonho, se é que você não percebeu. Você é um ser humano comum, como tantos outros bilhões. Tem noção? Bilhões! Isso sem comparar com o tamanho do universo inteiro... Você é menos que nada, meu rapaz! Pelo menos desse ponto de vista, mas... Não há nada que a mais insignificante pulga não possa fazer se nela houver determinação e força de vontade, sabe como é, é chato dizer isso mas muitos daqueles livros de auto-ajuda que suas tias lêem podem ter um certo fundo de verdade... Porém, deve-se dizer aqui que a morte, tanto quanto a vida, é uma peça misteriosamente essencial no que diz respeito à caracterização absoluta de um ser humano. Compreende? Juntar essas três questões — a insignificância inegável, a determinação inesgotável e a morte inevitável — e trazê-las a você é um favor que estou fazendo. Guarde isso com sabedoria.
Houve um clarão. O sonho terminara. Dante abriu os olhos e deparou-se com o nascer do sol. As palavras de Leon ainda ressoavam em sua mente: "Guarde com sabedoria..." Levantou-se e, lembrando-se das três questões, pensou consigo mesmo: "Não, Leon. Seria egoísmo se preocupar somente com essas três questões dentro desse mundo tão diverso. Contudo... Eu estaria sendo muito mais egoísta se continuasse nessa minha tentativa de querer esquecer os meus problemas. Vou usar a pouca sabedoria que tenho e vou, um dia, se isso for possível, retribuir esse seu favor!"
— Pelo jeito você já entendeu. — uma voz acabava de chegar aos ouvidos de Dante. Era Leon, em carne e osso, sentado bem ali ao seu lado, com as mesmas roupas, com a mesma aparência, com a mesma espiral na testa.
— O quê? Entendi o quê? — interrogou Dante, surpreso.
O velho levantou num salto, dizendo:
— Você entendeu a si mesmo. Apenas isso. — virou as costas para Dante e, acenando com a mão direita, despediu-se: — Até a próxima!
— Espere! — gritou Dante — Como você sabia...? De onde você veio? De onde você veio, Leon? Quem é você realmente?
— Sou só um amigo, mas não se preocupe com isso no momento. Por hora, pense bastante em como irá retribuir o favor que fiz a você!
O velho então começou a caminhar com estranha leveza, mas seus passos eram incompreensivelmente rápidos. Dante ficou apenas observando-o se distanciar, percebendo ao mesmo tempo que, a partir daquele momento, a sua "caracterização como ser humano" nunca mais seria a mesma. "Obrigado... Leon."

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Capítulo 7 - A Ópera Dos Deuses Contemporâneos

Foi por volta das onze e quinze da noite que Jóhann, Isadora e Marina chegaram, locomovidos pelo Celta Preto, na residência do jovem Luiz. Era uma pequena casa no simples Bairro Vaz de Lima, possivelmente uma das mais antigas de lá, o portãozinho amarelo parecia ter sido maldosamente maltratado pelo tempo. Isadora foi a única a descer do carro e, como não havia uma campainha, colocou as mãos entre as grades do portão e bateu palmas.
— Olááá! — gritou.
No carro, Marina, no banco de trás, já mais calma, questionava Jóhann sobre o local onde estavam.
— É aqui, Marina, que um garoto chamado Luiz mora. Ele toca folk e também tem uma certa experiência com o jazz. É, sem dúvida, uma das pessoas mais incríveis que já conheci.
— Entendi... Mas, o que vocês vieram fazer na casa dele esta hora da noite? — Marina tinha uma voz meiga e perspicaz. Era quase um deleite ouvi-la falar.
— Basicamente, viemos ver se está tudo bem com ele. E nós sabemos que o mesmo nunca está dormindo nesse horário.
— Entendo, entendo. Mas, qual seria, especificamente, a "conexão" que vocês tem com ele?
Marina constatou que sua pergunta havia sido bastante certeira. Ou Jóhann iria se esquivar da resposta ou lhe daria sem pestanejar. E o que ele fez foi mais ou menos uma mistura das duas coisas.
— A nossa conexão com ele, bela Marina, é aproximadamente a mesma conexão que temos com você. A única diferença é que ele se lembra de nós.
Marina riu.
— Você não está sendo muito claro. Por que não me diz, então, qual seria a minha conexão com vocês!?
— É, simplesmente, o fato de que... Ah, veja, ali está ele!
Jóhann apontara para o portão amarelo, cuja a fechadura estava sendo aberta por rapaz alto, magro e com longos e lisos cabelos castanhos. Dentro do veículo, Marina não podia ver o que ele conversava com Isadora.
— Ele é alto... — comentou Marina — Só que não chega a ser tão grande quanto Isadora. Aquela mulher é bizarra!
— Realmente... — concordou Jóhann — Bizarra mas genial, isso eu lhe garanto.
Ensimesmada, Marina tentou, minuciosamente, ler os lábios de Luiz e Isadora. Seus olhos pungentes e ágeis não deixavam quase nada escapar, mas a conversa parecia trivial. Desviou o olhar, mirando, desta vez, os olhos de Luiz: eram olhos cansados, com alguma cor indistinguível daquela distância, entretanto, havia uma certa falta de mesmice naquele olhar que deixou Marina estranhamente fascinada. No momento em que ela sentia esse fascínio, os olhos dele se encontraram com os dela e tudo estremeceu. Apesar disso, a sensação que Marina sentia não era exatamente boa...
— Eu o conheço. De alguma forma, eu o conheço.
— Sim, de fato — confirmou Jóhann, para surpresa da garota — Se não estou equivocado, esta é a terceira vez em que você o vê.
— Terceira?
— Exato. Na verdade, essa é a primeira situação em que você está vendo-o com clareza, já que nas outras duas ele sempre esteve envolvido por uma multidão de pessoas... A primeira vez foi no seu aniversário de nove anos e a segunda dentro de um trem.
Marina, em estado de assombro e perplexidade, interrogou Jóhann com acidez:
— Excelente, excelente. Você vai ficar me deixando com cada vez mais dúvidas e vai continuar não explicando nada. Como é possível que você conheça mais detalhes da minha vida do que eu mesma? Pára de hipocrisia, senhor Jóhann, pára de fugir, isso não é justo, eu mereço uma explicação!
O islandês, fingindo não ter ouvido nada, apanhou um CD no porta-luvas e inseriu-o no rádio. Segundos depois, a ópera Don Giovanni, de Mozart, começou a tocar.
— Adoro esta — disse Jóhann — É a obra-prima de Wolfgang, na minha opinião.
A garota dos cabelos muito cacheados revoltou-se com tudo aquilo. Tentou sair do carro, mas as portas estavam travadas. Juntou todas as suas forças no punho direito, fitou a janela da porta do lado esquerdo do banco de trás e, com bastante velocidade, esmurrou o vidro — ouviu-se um auto ruído; estilhaços de vidro espalhavam-se por todos os lados; a supostamente delicada mão de Marina sangrava, e ela, num ato inacreditável de agilidade, saltou para fora do Celta. Jóhann mal pode pensar em tentar segurá-la.
— Não sei quem vocês são — bradava Marina, fora do veículo, enquanto se preparava para correr — E, mesmo achando que seria interessante saber, prefiro não confiar!
E disparou no meio da escuridão da noite.
Meio segundo depois, Isadora olhou para Jóhann rapidamente, como se esperasse algum sinal de confirmação por parte dele. Ele, mal mexendo os lábios, murmurou:
— Faça.
E o que Isadora fez foi humanamente impossível. Ela abriu a boca e proferiu o nome "Marina" numa intensidade de decibéis tão estrondosa e ecoante que, inevitavelmente, acordaria qualquer ser humano que estivesse dormindo numa área de duzentos e cinquenta metros quadrados. Em seguida, soltou um "Volte, garota!" mais ensurdecedor ainda. Marina virou a cabeça para trás, apavorada, e tomou o maior susto de sua vida: Isadora estava bem ali, olhando-a seriamente, a menos de um metro de distância dela. Era impossível que a mulher tivesse conseguido alcançá-la em tão pouco tempo. Marina corria rápido. Só havia uma resposta.
— Vo... Você...? Como... ? — Marina via a coisa mais inconcebível do mundo acontecer diante de seus olhos.
— Volte apara o carro, querida. Por favor. — pediu Isadora.
— E... Espera aí... O que está havendo aqui? Como você veio parar aqui? Você estava lá com o tal do Luiz no portãozinho amarelo agora mesmo...
— Eu apenas escolhi onde eu quis estar.
Marina viu-se, mais uma vez, paralisada por aquele rosto extravagante de Isadora que ficava a encará-la com rispidez.
— Mas... Como você consegue fazer isso? Como você consegue ter esse poder?
A mulher dos cabelos coloridos respondeu:
— Em milênios, raramente vi olhos tão luminosos, tão profundos, tão emocionantes e tão atemporais como os seus. Você é uma dádiva, jovem Marina, uma verdadeira dádiva. A realidade é, de certo modo, uma ilusão, minha querida, e Jóhann e eu somos... Bom, nós somos deuses dentro dela!

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Capítulo 6 - A Vez Sombria de Uma Sombra

A poeira e o sol: aquele sol desenhado na parede do quarto de Manuela, um desenho com traços rudes mas simpáticos, possivelmente esperando por retoques finais. A garota de cabelos ruivos ainda segurava a foto da enigmática Marina nas mãos, tentando entender o que fazia aquele rosto ser a coisa tão profunda e chamativa que era. Cecília, na cozinha, cozinhava ovos. Eram quase dez horas da noite, ainda daquele mesmo dia.
Manuela suspirou longamente e imaginou, de repente, o que Dante teria feito desde o momento em que haviam se separado no ônibus. "Do jeito que ele é, ou fez alguma besteira, ou está chorando no travesseiro — o que não deixa de ser uma besteira também!", pensou a garota. Pôs as duas mãos no rosto, suspirou mais uma vez e foi tomar um banho.
— Cecília! — chamou — Vou ir pro chuveiro... Se eu demorar muito, me avise!
A amiga exclamou uma resposta positiva, rindo.
A água quente escorrendo pelo seu corpo nu dava-lhe um prazer peculiar. Era uma sensação acolhedora, o calor da água a fazia se sentir segura; sim, segura, mas, simultaneamente livre, livre para criar mundos e situações em sua mente. A criatividade transbordava. Toda a beleza, oculta ou não, das coisas, parecia desmergulhar em todas as direções. E começavam a vir...: primeiro um rinoceronte sonolento; depois, uma mulher com roupas esquisitas, rodeada por encanamentos; uma geladeira apodrecida; um homem que quase se assemelhava a um mendigo; e, por fim, uma gama amontoada de situações aparentemente variáveis, onde tudo tendia a acabar em explosões, tragédias e destruições. Mas, subitamente, Manuela não viu mais nada: só uma imensa escuridão, tão grande que, de quebra, a fez perder a consciência.
Cecília, ouvindo um barulho alto vindo do banheiro, correu até lá, abriu a porta do boxe e se deparou, horrorizada, com Manuela ali, caída no piso, convulsiva.
— Manu! Manuela! — Cecília gritava, desesperada. Desligou o chuveiro e, chorando, esperou que as contrações da amiga parassem, o que não aconteceu: a ruiva continuava a sacudir-se involuntariamente — Manuela, por favor, volta! Volta pra mim!
Cerca de cinco minutos se passaram e, aliviada, Cecília cobriu Manuela com um roupão ao ver as contrações se acalmarem. Levantou-a e colocou-a na cama do quarto, sentado-se na beirada. Observou bem o corpo desacordado da garota: sempre havia sentido uma certa atração física por ela. Um calor furtivo tomou conta de Cecília naquele instante. Sorrateiramente, subiu na cama, posicionando-se de bruços sobre Manuela, ficando a vislumbrar, bem de perto, aquele rosto doce e belíssimo envolvido pelos cabelos vermelhos meteóricos (mas sem o lado efêmero do significado desta palavra).
— Nariz bonitinho... — sussurrou Cecília — A cor da sua pele... Esses cabelos tão apaixonantes... Essa sua boca... Não sei se seria justo fazer isso agora, mas... Eu não consigo evitar.
E, assim, Cecília beijou com suavidade os dóceis lábios de Manuela, dando-lhe, em seguida, um beijo carinhoso na testa. Desceu da cama e, fechando a porta do quarto ao sair, murmurou:
— Volte logo, garota vermelha.
Cecília foi até a sala, e, no meio daquele silêncio, a campainha tocou.
— Quem é? — perguntou ela.
Uma voz masculina do outro lado da porta respondeu:
— Sou eu! Dante!
Ela abriu a porta e viu Dante todo encharcado e sem fôlego.
— O que foi? — ela o questionou.
— Preciso... — ele parou para respirar — De ajuda.
— Por quê? O que aconteceu?
— Não é um bom momento pra falar. Não agora.
— Então, você não entra.
Ela foi fechando a porta, mas Dante segurou-a.
— Cecília, por favor. Eu fiz uma besteira enorme e não tenho como contar com ninguém, só com vocês duas. Por favor. É a última coisa que eu peço.
— Dante... eu entendo. A gente se coonhece há um bom tempo, e você sabe que nós te ajudaremos sempre que for necessário. Mas, no momento, não seria bom que você e a Manuela se vissem de novo, então, a não ser que você abra o jogo de uma vez, é melhor ir embora.
O garoto fechou os olhos, pensou e decidiu falar:
— Está bem. Eu... eu acabei de matar o meu pai!
— O quê? Você endoidou?
— Eu o matei, Cecília, eu o matei! Mas foi em legítima defesa! A arma era dele, eu o matei e joguei ela fora!
Razoavelmente chocada, ela dexou-o entrar.
— Tá bom, Dante, tá bom. Hoje eu tive um dia pesado, então, me explique uma coisa.
— Estou ouvindo.
— Como você pode provar que tudo isso que você me falou não passa de um pretexto pra que você possa ver a Manuela de novo?
— O quê? De onde você tirou isso?
— Dessa sua cara cínica. Não sei como ela te aguentou todo esse tempo. Cadê o seu caráter, garoto?
— Depois, quem endoidou fui eu... Se você quiser, eu te levo pra ver o cadáver dele agora mesmo!
— Não precisa.
— Ah, não?
— Não. Eu posso ver o sangue.
— Sangue? Onde?
— Em toda parte. O mundo é feito de sangue, Dante. O seu pai merecia morrer e você sabe disso. Pare de tentar controlar a situação. As coisas vão acontecer, e relaxar é a melhor coisa que você pode fazer no momento.
Ela segurou a mão dele, ambos sentaram-se no sofá e olhou-o nos olhos profundamente.
— Vá embora. Fique frio. Você não tem o que temer, nem mesmo a morte. Todo mundo morre um dia. E todo mundo sabe disso.
Eis que Dante se levantou e sem falar palavra alguma, caminhou até a porta e saiu, fechando-a devagar.
Cecília se espreguiçou, respirou fundo. E sorriu.

sábado, 21 de junho de 2008

Capítulo 5 - Mundo Inconstante

— Não é mais nada, nunca foi. Talvez até seja um dia, mas é improvável. Esse rapaz é deplorável, é triste dizer isso, mas é a mais pura verdade! — uma senhora alta, de cabelos coloridos, com um estilo excêntrico e contemporâneo de se vestir, com cerca de cinquenta anos de idade, conversava quase que escandalosamente com um senhor franzino e misterioso, com sotaque estrangeiro (era islandês) que deveria ter no máximo quarenta anos, numa mesa de um restaurante da Avenida Paulista.
— Eu acho que discordo. O pobre jovem não sabe bem que caminho seguir na vida, apesar de já estar com vinte anos, mas assim mesmo existe um potencial nele, um potencial adormecido.
A mulher passou a mão pelos cabelos, tomou um gole do Whisky que estava em cima da mesa e retrucou:
— Besteira. Quando alguém é assim, não tem jeito. Esse tal potencial vai ficar adormecido pro resto da vida, a não ser que algo muito impactante surja de repente, e o desperte.
— Mais uma vez, discordo. Ele teve algumas conquistas na vida. Não sei se alguma coisa o despertaria mais do que a recente morte da mãe, então descartaria essa hipótese. É possível que a ausência de Manuela em sua vida possua um peso que, com o decorrer do tempo, venha a modificá-lo mais intensamente. Não sei. Mesmo assim acho que devíamos apostar nele.
— Jóhann, você está se precipitando. Mal analisou a irmã dele, esta sim parece ter algumas peculiaridades valorosas e interessantes. Já olhou nos olhos daquela jovem? Jamais vi olhos como aqueles, só podem ser extra-terrenos! Sem falar da personalidade, que é indiscutivelmente brilhante. Ela é um ser muito único para que deixemos passar batido.
Dessa vez foi Jóhann quem bebeu um pouco do Whisky e ficou a bater de leve na mesa com os dedos.
— Sim, eu pensei nela também, Isadora. Aquela garota, Marina, possui um inteligência que, se não equivale à nossa, no mínimo, chega perto. O problema, no entanto, é o vasto potencial interior dela — pode fugir totalmente do controle, e, nesse caso, é melhor nem estarmos perto.
O garçom veio e Jóhann pagou a conta. Isadora e ele se levantaram (com certa impulsividade) e caminharam para fora do estabelecimento; a Avenida Paulista, à noite, parecia pacífica e sossegada. Os dois entraram num Celta preto que estava estacionado perto dali — Jóhann pôs-se a dirigir o veículo.
Isadora, colocando o cinto, comentou:
— Acho que seria bom darmos uma olhada no nosso outro garoto antes.
— Quem, o Dante?
— Não, o Luiz.
— Quê? Eu imaginava que, pelo menos com relação à ele, nossas tentativas tinham se esgotado.
— Provavelmente acabaram... mas os problemas dele não são só psíquicos ou existenciais. O coitado passa fome.
— Isadora... a culpa não é nossa.
— Nem dele. É só deixarmos algo pro infeliz comer e pronto. Eu já passei fome, e não é nem um pouco bom.
Olhando para o lado, na rua quase vazia, enquanto o farol estava vermelho, Jóhann só viu uma jovem de bicicleta — os cabelos muito cacheados só o remeteram a uma pessoa.
— Veja, Isadora.
Isadora fitou-a, eufórica. Marina, por acaso, virou a cabeça e viu os dois no carro a observarem-na.
— Vá Jóhann, pegue-a, rápido! Saia do carro e pegue-a!
O islandês pulou para fora do Celta, sendo praticamente empurrado por Isadora. Marina mal teve tempo de pensar em colocar o pé no pedal: já estava imóvel entre os braços magros de Jóhann, sendo levada para o carro preto e vendo sua companheira quase íntima, a bicicleta, ficar cada vez mais longe de si. Jóhann jogou a jovem no banco de trás e voltou para o volante. A garota, já preparada para gritar e tentar fugir, ficou inteiramente paralisada ao ver a figura de Isadora a sorrir bondosamente para ela.
— Olá, Marina. Talvez você não se lembre, mas essa não é a primeira vez que nos vemos.
— Eu... Eu... Não sei. — Marina gaguejava.
— É compreensível. Agora, escute: no momento, você vai apenas aguardar. Eu e meu amigo temos uma tarefa a cumprir, coisa rápida. Depois disso, vamos te mostrar... como eu poderia te dizer — ah sim! — um novo mundo! — e, com as mãos abertas, desenhou um semi-círculo no ar.

sábado, 14 de junho de 2008

Capítulo 4 - Chuva, Grama e Sangue

A praça estava quase vazia, possivelmente pela chuva que começava a cair por ali, Dante foi convidado por seu pai para sentar em um dos bancos, que se sentou também em seguida ao lado do filho. Dante, em sua atual situação, não sabia se sentia medo ou raiva, se gritava acusando o pai ou se corria para fugir do assassino. No fim das contas ficou ali, esperando para ouvir qualquer coisa que o pai tivesse para dizer. A mistura do vento frio e da garoa cortante embrulhava o estômago do garoto. Respirou fundo e direcionou sua atenção ao pai.
— Filho... Antes de tudo, preciso te dizer: a culpa não foi minha — aquela frase doeu em Dante como se tivesse levado um murro no pâncreas — Sua mãe não sabia o que estava fazendo e, no meio daquela reviravolta, a arma acabou disparando. Você viu, você estava lá.
Virando a cabeça e olhando o pai com fúria, Dante retrucou:
— Sim, eu vi, eu estava lá, eu vi você matando a minha mãe, foi isso que eu vi! Não sei como você ainda consegue negar isso, não é possível.
Ambos ficaram em silêncio. O Sr. Alves olhava o horizonte, pensativo, talvez chegando a perceber que não dava mais para enganar o filho, não naquela altura do campeonato. Era um homem alto, magro, e com uma constante expressão de cansaço no rosto, o que lhe dava uma aparência mais velha do que a sua idade real, trinta e nove anos. A perda de seu emprego resultou numa intensa briga de família que durou muitos meses, atingindo o ápice no dia da morte da esposa e a sua fuga. A partir dali Dante e Marina passaram a morar com os tios, mas não se passou uma semana e a irmã mais nova de Dante havia fugido, levando apenas algumas roupas e sua inseparável bicicleta.
— Dante, meu filho, você já é quase adulto, você entende o mundo, entende as coisas. Eu quero apenas fazer um acordo contigo. A nossa família acabou, não há mais o que tentar recuperar. Só preciso que você colabore, pela última vez.
— Colaborar? Colaborar?!? Pai, você está enlouquecendo? Você acha que eu vou colaborar em alguma coisa para ajudar você depois de matar a minha mãe, seu desgraçado?
— Meu rapaz, eu já estou na merda. Acabar com você não seria agradável para mim, mas eu não hesitaria se fosse necessário; quero evitar ter que sujar as mãos de novo, se você me entende. Por isso é que peço sua colaboração, nada mais. É só ficar quieto, de bico fechado, e todo mundo sai ganhando. Essa é a proposta e, como você vê, não tem muita opção.
O estômago de Dante embrulhou-se mais ainda. Tinha que pensar num jeito, numa maneira de fazer justiça, por mais que as coisas pudessem acabar meio sangrentas. O garoto rodeou o ambiente com os olhos, procurando algum objeto que pude-se ajudá-lo a abater o pai de alguma forma, mas não havia nada.
— Pai... Você é um desgraçado. O maior que já conheci — e, num ímpeto de fúria, avançou sobre o pai, derrubando na grama do parque, dando-lhe repetitivos socos no rosto e em qualquer lugar que conseguia, mas o pai era mais forte, com apenas um braço, desvencilhou-se do filho, se levantou, tirou o revólver de dentro do casaco e mirou Dante.
— Não precisava fazer isso Dante, não precisava me deixar com mais raiva.
Dante, sem temer o revólver que o pai apontava-lhe, retrucou:
— Raiva? Quem tem que ter raiva sou eu, pai, eu!
Num rápido movimento de pernas, Dante deu uma rasteira no pai, fazendo com que o ele caísse, perdendo a arma, que ficou à uns dois metros de distância dos dois. Dante ficou de pé, apanhou a arma e dimensionou-a, mesmo mal sabendo manuseá-la, diretamente para o pai. Engatilhou. Seu dedo indicador tremia no gatilho. O Sr. Alves, levantando a mão, inventou, de repente, uma mentira que, como ele imaginava, talvez imobilizaria Dante.
— Pare, filho, pare! Se fizer isso... se fizer isso nunca mais vai ver sua irmã de novo! Nunca!
— O quê?
— É o que você ouviu: só eu sei onde sua irmã está. Se você atirar agora nunca mais vai vê-la. E não adianta você me levar para uma delegacia agora, pois, por mais que você me acuse de qualquer coisa, eu negarei tudo, não existem provas de nada. Ninguém acreditará em você, seu miserável. E, além do que...
Dante puxou o gatilho. Ouviu-se um estrondoso ruído. O Sr. Alves parou de falar. Uma trovoada irrompeu no céu. O sangue, misturando-se com a grama e a chuva, parecia brilhar num tom mais vermelho do que o normal, um vermelho muito vivo, e continuou escorrendo, abrindo caminho entre as folhas verdes. Um caminho vermelho.
— Acabou, pai. Acabou.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Capítulo 3 - Marina

Quando Manuela chegou ao apartamento na Rua Vergueiro, a amiga Cecília a esperava na porta, com uma expressão aflita no rosto.
— Entra
Manuela entrou. O apartamento razoavelmente grande estava um tanto quanto bagunçado, com algumas roupas espalhadas pelos cantos, mas nada muito aterrador. Cecília fechou a porta e foi se sentar ao lado de Manuela no sofá.
— Manu...
— Cecília, eu encontrei o Dante no ônibus. Acho que as coisas estão mais amenas. Ele entendeu agora.
— Que bom. Bom para vocês. Espero que esteja fazendo a coisa certa.
— Acho que estou sim.
As duas se olharam, sorrindo. Cecília, com seus longos cabelos negros e olhos azul-esverdeados era quase tão bonita quanto Manuela. Eram amigas desde quando entraram na faculdade — o curso era de Publicidade, mas ambas haviam o largado faziam três meses. De lá, arrumaram um emprego e resolveram rachar o aluguel do apartamento.
— Isso também me alivia, sabia? — comentou Cecília — É muito bom ver você com essa cara renovada.
— A sensação de liberdade é ótima agora. Não que eu não gostasse do Dante do meu lado, mas, você sabe, tem horas em que a gente não suporta mais. Mas, deixa pra lá. O caso tá resolvido. Agora me fala: qual era a proposta da qual você falou no celular, hum? Pode ir falando.
Cecília riu.
— É coisa simples, Manuela, mas não pra agora. Tem que ser nas férias, e elas estão chegando, só falta um mês. Você pode ter se demitido da floricultura, mas eu ainda estou penando lá na firma. As papeladas que eu tenho que arrumar todo dia são uma tortura.
— Tá, tudo bem. Mas você ainda não disse qual é a proposta.
— É o seguinte: eu conheço um pessoal meio hippie lá do interior, de uma terrinha perto de Itu... e, bom, eu pensei se nós não poderíamos ir para lá nas férias, ficar uns dias, pra esquecer toda grandeza insuportável dessa cidade, para respirar outros ares, fazer coisas diferentes. E aí, topa?
— Primeira coisa: não fale mal da grandeza de São Paulo. Eu tenho uma relação com essa cidade, eu a amo demais. Segunda coisa: não gosto muito desses interiorezinhos aí, eu não tenho nada contra esses seus amigos, mas não duvido nada de que irá rolar muita droga nesse lugar, você sabe o que eu quero dizer, e terceira coisa: o que eu queria era viajar pra conhecer outras cidades grandes e tal. Mas, sei lá, podemos ir mesmo assim, se o pessoal for realmente interessante, pode ser uma experiência boa.
Não compreendendo totalmente os motivos da amiga, Cecília exclamou:
— Que saco, pô! Você me fala que queria viajar sem rumo por aí, fazer mais coisas e o caramba, mas quando as oportunidades aparecem, você as trata com todo esse desprezo?
— Não trata-se de desprezo, Cecília, é sinceridade. Só isso, você sabe. Mas nós vamos ir sim, não esquenta. Se vai ser bom ou não, que se dane, vamos ver no que vai dar.
Manuela se levantou e foi até a janela. Uma garoa fina começava a despencar do céu. Um cansaço mental incômodo parecia querer dominar sua mente. Fechou os olhos.
— Manu... — chamou Cecília — É quase impossível não ficar melancólico nesses dias obscuros e gélidos, mas, acredite, as coisas vão melhorar, eu tenho certeza.
Rindo num tom meio zombeteiro, Manuela disse:
— Como pode ter certeza? Como vai me garantir que a minha vida não vai continuar sendo essa merda pra sempre?
— Descansa, Manuela. Vai esfriar a cabeça um pouco.
— Vou mesmo — mas, enquanto isso, lá fora, Manuela acabava de ver repentinamente, uma pessoa conhecida — Cecília, vem cá, olha ali! —
Manuela apontou para uma garota agachada no meio da calçada amarrando o tênis, com uma bicicleta do lado. Os cabelos muito cacheados, cortados na altura dos ombros, davam-lhe um ar alternativo, mas que não deixava de ser comum, não deixava de ser uma pessoa com um semblante cheio de personalidade (ou não!), mas era singular, singular na aparência, na beleza, em tudo, mas talvez tudo isso fosse apenas suposição, talvez fosse uma garota antipática, infantil, tola, mas quem não deixa de ser tolo, ou antipático, ou infantil em alguns momentos? Era, afinal, um ser humano, como qualquer outro, como Manuela, Dante ou Cecília — seu nome: Marina.
— É a Marina, não é? E agora? Vamos atrás dela? — perguntou Cecília.
— Bom, não sei, ela fugiu de casa por conta própria, não acho que devemos interferir na decisão dela. Se bem que vai ser meio difícil ver ela de novo numa cidade como essa... Vamos, vamos lá, temos que pelo menos falar com ela.
Afobadamente, as duas correram velozmente para fora do apartamento, desceram dois andares de elevador (o apartamento delas ficava no segundo andar) e, virando a esquina, chegaram à calçada onde Marina estava. Ao verem a garota montar na bicicleta, saíram correndo, gritando o nome dela, num desespero cômico e estranho.
— Marina! Marinaaaa!
E, numa calma extraordinária, Marina, dando uma rápida olhada para trás, começou a pedalar, ainda ouvindo as vozes das duas que gritavam estupidamente.
— Marina! Esperaaaa!
Continuaram a correr atrás dela, Marina virou outra esquina, e depois, acelerando a pedalada, foi sumindo de vista.
— É, perdemos ela. — falou Cecília, desapontada.
— Sim, mas... o que é isso? — Manuela se abaixou para pegar um pedaço de papel caído no chão. Parecia ser a metade de uma foto rasgada no meio, nela via-se o rosto de Marina, um rosto absurdamente perfeito, os pungentes olhos castanho-claros, um sutil sorriso aparecia nos lábios, a menina de dezessete anos exalava grandeza, alvura, paciência, e, acima de tudo, exalava o poder de ser independente. — Como ela é bonita... Ah, tem algo escrito atrás: "Para vocês duas: se quiserem mesmo me encontrar para conversar, saber as circunstâncias dos meus atos, ou qualquer coisa, me encontrem daqui há seis dias no Terminal Bandeira, às 17:00. Eu sou uma coisa que pensa."
Uma brisa leve e nostálgica acompanhava desordenadamente os pingos da garoa que caía na Rua Vergueiro naquele momento.

sábado, 31 de maio de 2008

Capítulo 2 - Despedida Turva

— D... Dante? Como é possível, o que você ‘tá fazendo aqui? — o garoto ficava olhando-a nos olhos, sem falar palavra alguma. Coçou ligeiramente a barba malfeita e desviou o olhar — O que você tem na cabeça, Dante? Eu pensei que depois de ontem as coisas tinham ficado bem claras.
Dante, dando um murro no banco da frente, gritou:
— Mas não dá! Não dá! Pra mim não dá! Eu sei que isso é ridículo, mas não consigo continuar assim!
— Cala a boca, cala a boca, por favor! Não agüento mais a sua teimosia! Você vai ter que entender, Dante, você vai ter que esperar!
— Mas, justo agora? Justo agora quando eu estou nessa situação? Meu pai mata minha mãe e some, a Marina foge de casa, eu fico quebrado, abandonado, semimorto, e você também me chuta assim, tão friamente?
— Esquece isso, Dante, esquece a sua família, você é um ser individual, esquece tudo isso, esquece tudo que passou...
A garota virou-se para a janela, olhou os edifícios suspirando, sorrindo. Dante, cobrindo o rosto com as mãos, tentava não sentir raiva do que Manuela havia dito.
— Não dá, já disse, não dá! — ele insistia — A família tem muita influência no indivíduo que eu sou, não tem como isso não ter impacto sobre mim.
Manuela, ainda observando os prédios, falou com uma doçura inigualável na voz:
— Dante... o que você vê nesses prédios todos, em tudo isso?
O rapaz viu um amontoado de edifícios de todos os tipos, a representação mais comum da cidade de São Paulo, e nuvens escuras começavam a surgir no céu — choveria na cidade.
— Nada. Não consigo me sentir tão fascinado por isso quanto você. São apenas prédios.
— Isso mesmo, não passam de prédios. Eu me sinto fascinada por eles e nem sei por quê. É uma fascinação muito forte Dante, e eu queria que você compartilhasse dela comigo, mas as coisas são como são, não como queremos que elas sejam. Por mais que o que eu esteja fazendo seja um erro, eu preciso achar a pessoa que compartilhe dessa fascinação comigo.
— E é por essa idiotice que você vai destruir uma relação de anos? Não consigo entender você, Manuela, simplesmente não consigo. Sua cabeça parece girar num sentido contrário das pessoas normais.
Manuela ainda observava os prédios, seus olhos brilhavam, uma explosão de pensamentos, emoções e idéias reviravam sua mente.
— Não é só por isso. Eu preciso ficar um tempo da minha vida sozinha, livre. Você é especial pra mim, e muito, mas nós precisamos seguir distantes um do outro agora, pra depois retornarmos mais firmes, melhores um para o outro. É necessidade de todo casal, parece besteira, mas vai nos fazer bem.
Eis que, colocando as mãos nas bochechas dele, Manuela o beijou lentamente, um beijo objetivo mas lento, que o remeteu aos momentos mais importantes vividos com ela: o dia em que se encontraram pela primeira vez, na festa de aniversário de Marina; o dia em que deram o primeiro beijo; o dia em que viajaram juntos com uma turma do colégio à praia de Santos; o dia em que dormiram juntos no metrô, sem motivo; o dia em voltavam de um encontro num restaurante da Av. Paulista; o dia em que tiveram sua primeira relação sexual. E então os lábios se separaram, e o mundo caiu pesadamente sobre os dois. A garota se levantou, deu sinal apertando o botão laranja e disse:
— Vou descer no próximo.
Ele só a olhava, e os olhares eram a única coisa de que precisavam. Dante a entendia agora. Acenou com a cabeça, a porta do ônibus abriu e Manuela foi-se, misturando-se com a multidão lá fora.
Sozinho, no ônibus, Dante suspirou:
— Adeus.
Mas ele dificilmente imaginaria que, sentado no último banco do ônibus, ouvindo tudo, estava seu pai, assassino da própria esposa, o Sr. Alves, como o chamavam. Ele se levantou, foi até o banco onde o filho estava sentado e colocou a mão direita no ombro dele, apertando-o com força.
— Vamos, Dante. Precisamos conversar.

sábado, 24 de maio de 2008

Capítulo 1 - Apenas Alguns Seres Humanos


Cinco horas da tarde, quarta-feira. Deitada na grama, debaixo da sombra de uma árvore, fumando seu cigarrinho diário, estava Manuela. Cansada, confusa, fitava com seus graciosos olhos azuis (que olhos!) algum ponto incerto no meio dos galhos e folhas. A fumaça do cigarro meio que embaçava-lhe a vista, mas ela planejava parar com esse vício, mesmo que um cigarro por dia fosse pouco se comparado com muitos outros fumantes obsessivos espalhados pelo planeta. Para ela, tratava-se apenas de mais um vício passageiro na sua vida, no meio de tantos outros que já tivera ou viria a ter — as pessoas são assim, cheias disso, e no meio estão suas crenças, seus fascínios, paixões, chegando por fim na razão e na criatividade. Manuela era assim, mas seguia caminhos mais mesclados, talvez até "descolados"; era uma típica garota com visual "cool" e, como se não bastasse, espetacularmente bonita: seus longos cabelos ruivos, de um vermelho bem vivo, vermelho sangue, eram sua maior peculiaridade quando somados aos olhos azuis — mas, não só isso, pois tinha um rosto lindo, "bem desenhado", como dizem, e era dona de um corpo modelado com perfeição. Porém, não era só no seu lado exterior que a garota surpreendia, tinha um grande potencial de intelecto, talvez alcançado de uma maneira um tanto quanto capenga, mas que era uma mente forte, elevada, isso era.
— Que saco...! — exclamou, sozinha, tirando o cigarro da boca e jogando-o ainda aceso perto dos pés para depois apagá-lo, pisoteando-o com a bota plataforma que usava. — O que eu ganho fumando isso? O que eu perco fumando essa merda? — perguntava-se.
Ficou de pé. Suspirou. Seu estômago doía de fome, não comia desde as oito horas da manhã. Sem dinheiro, não tinha como comprar nada nas barraquinhas espalhadas pelo Parque do Ibirapuera, que era onde estava, um dos seus lugares favoritos para tranqüilizar a mente, aliviar o estresse. Mas tudo, pouco a pouco, ia se tornando cada vez mais angustiante: sua vida parecia desmoronar — mas isso tinha acabado naquele dia, naquela quarta-feira. O telefone celular, no bolso de trás da sua calça jeans, começou a tocar (o toque era uma música do Sigur Rós, uma banda islandesa razoavelmente famosa de pós-rock formada nos anos 90), Manuela o retirou de lá e olhou o visor: era sua amiga Cecília, com quem dividia o apartamento em que morava. Atendeu.
— Fala.
— Tudo bem, Manu? ‘Cê tá demorando pra chegar, o que acontece?
— Nada não, Cecília. ‘Tava só esfriando a cabeça, tô de saco cheio...
— Manuela... Como assim? Saco cheio do quê? De mim?
— Ah! De você e de todo mundo! Quero sumir, quero pegar uma estrada, viajar por aí, sem rumo. Tô cansada de toda essa grande merda que o mundo é! Cansada de verdade!
Cecília, do outro lado da linha, não sabia se ficava surpreendida ou se achava graça da situação. "Ela está brincando, só pode", pensou.
— Hahaha! Para de bancar a depressiva, para de bancar a vítima, Manu. Não tem como você fugir do mundo. É absolutamente impossível, garota. E existe muita coisa boa nele pra você ir desistindo de tudo assim...
— É exatamente isso o que quero fazer, poxa! Quero aproveitar o mundo, eu quero viver, caramba! Quero montar uma banda, quero fazer mais sexo, quero viajar pelo mundo! Será que você, que me conhece há tanto tempo, consegue entender isso?
— Eu te entendo, Manu.
— Entende mesmo?
— Sim, mas, calma. Eu já senti a mesma coisa que você e te entendo tão bem que quero propor um acordo.
No Parque, Manuela caminhava velozmente para a saída. De repente, lembrou-se das palavras de Dante, ditas à ela na noite anterior: "Você não vale nada, Manuela. Nada. Me excluiu da sua vida quando eu mais precisei de você. Não dá, Manuela, não dá pra entender você!", e o jovem Dante, à beira das lágrimas, saiu correndo no meio do Terminal Santo Amaro. Manuela voltou à Cecília:
— Eu sei o que você quer propor, Cecília, e não quero saber, não aceito esse acordo idiota. Não vou fazer as pazes com o Dante, não depois do que ele fez.
— Manu... esquece o Dante. Não é nada relacionado à ele. Venha logo aqui para o apartamento e a gente conversa melhor. Aproveita e tira uma soneca no busão. Você precisa, você merece.
— Tá... Tô exausta. Desculpa. Até daqui há pouco... Ah! Eu já ia me esquecendo: eu me demiti da floricultura hoje!
E desligou o celular. Manuela, pensativa, parou de andar por um instante bem na entrada do parque e observou ao redor: os ônibus, os carros, os prédios, as pessoas, a poluição, o céu, o asfalto, as árvores que ficavam pra trás, tudo que o seu campo de visão podia alcançar... o que era tudo aquilo? "Preciso usar mais os outros sentidos", pensou a garota ruiva. "A visão é cansativa às vezes".
Sentou-se num banco no ponto de ônibus e ficou a esperar a chegada do meio de transporte. Um velho esquisito (não era um mendigo!), não chegava a ser mal vestido, mas tampouco se vestia bem, estava sentado próximo à Manuela, e fazia gestos estranhos com as mãos, como se estivesse acariciando algum animal ou pessoa, ficando sempre a olhar para todos os lados com pressa, parecendo estar temendo a chegada de alguém. Manuela observou-o com dúvida, mas logo desviou o olhar, voltando a viajar em seus pensamentos. O velho então se levantou do banco cambaleando um pouco e foi se aproximando dela lentamente, até que, ao ficar frente a frente com ela, começou a balançar as mãos em volta dela sem tocá-la, murmurando umas baboseiras:
— Ô... Gui... Ê... Ô... Ih... Ô...! — aí abaixou os braços e voltou para o lugar onde estava sentado. Manuela, boquiaberta, não tinha entendido o misterioso gesto (se é que fazia algum sentido) e provavelmente não ia entender tão cedo.

O ônibus chegou, Manuela deu sinal, subiu e se sentou num banco ao lado da janela, encostando a cabeça no vidro e adormecendo. E, apesar da tranqüilidade, não teve nenhum sonho significativo o suficiente para que se lembrasse posteriormente. No entanto, uma pessoa, uma significativa pessoa, adentrava no ônibus quando o mesmo parou no ponto seguinte, o indivíduo subiu no veículo, passou pela catraca e viu Manuela quase que de imediato e, meio inconscientemente, sentou-se a lado da garota. Esse indivíduo era Dante.
Dante era um ser humano distinto. Apesar da aparência bastante comum, por dentro guardava uma personalidade instável, turbulenta e, por que não dizer, esquisita. Era um rapaz bonito, culto, cheio de vida, educado, mas ao mesmo tempo não era muito sociável, nem expressivo, e raramente sabia divertir as pessoas (a não ser quando conseguia diverti-las involuntariamente). Mas talvez fosse possível dizer que naquele garoto existia alguma coisa especial, alguma coisa que, no meio de tanta contradição, brilhava ardentemente. Seguindo esta linha, é provável que Manuela tenha visto nele essa coisa que brilhava e, por esta razão, iniciaram uma relação amorosa. O ano era 1999, Manuela e Dante tinham onze e doze anos, respectivamente. A irmã mais nova de Dante, Marina, ia fazer nove anos de idade e sua mãe ia fazer uma daquelas típicas festanças de filmes americanos no seu vasto quintal gramado. As mães de Manuela e Dante não chegavam a ser amigas, mas eram colegas de trabalho e, já que a festa seria grande, quando mais gente fosse convidada, melhor. A pequena Manuela não tinha a mínima vontade de ir, pois o pai havia prometido que a levaria no cinema, e do jeito que as coisas andavam (a mãe era a voz ativa da casa, se é que vocês me entendem!), essa promessa seria quebrada. Dito e feito, estavam lá os três na festa de nove anos de Marina, um mundaréu de adultos e crianças comiam, corriam, riam, brincavam, era tudo uma aparente alegria sem fim, até o ainda pequeno e já anti-social Dante se divertia. Sua irmã Marina comia doces sem parar. Manuela, no entanto, estava isolada, num canto, sentada numa cadeira de plástico, ainda emburrada por não ter ido ao cinema. A mãe da aniversariante logo viu a menina solitária e pediu que Dante fosse chamá-la para comer alguma coisa. Deve-se dizer que foi exatamente nesse instante que os dois se conheceram e definitivamente nunca mais se esqueceriam um do outro.
— Quer comer um brigadeiro?
— Tá...
E, mastigando um delicioso beijinho, Dante, meio exaltado e meio impulsivo, disse:
— Você é linda.
Surpresa, a menina respondeu:
— Obrigado.
No ônibus, Dante apreciava em silêncio a beleza daquela Manuela adormecida, ainda a amava mais do que qualquer outra coisa e, enquanto essa certeza o dominava, o ônibus deu um solavanco forte e a garota acordou. Ainda sonolenta, viu o asfalto pela janela, e depois olhou para o lado, demorando um certo tempo para reconhecer quem estava ali.
— D... Dante!?