quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Capítulo 14 - Pequenas Faíscas de Luz

Nas profundezas de um oceano onírico, uma garota de cabelos dourados derramava uma incontável quantidade de lágrimas sobre os corpos das pessoas mortas em alguma ocasião impossível de ser especificada. Toda a tristeza do mundo inundava a sua alma, mesmo que no fundo ela acreditasse, nem que fosse bem pouco, que a morte não era o fim. Era a sensação de uma perda sentida da forma mais primordial possível. A revolta, a incompreensão e o vazio. Os sonhos de Sara eram compostos disso — e quase que somente disto.
Foi com a imagem do rosto dela que Manuela acordou naquela manhã — a fria manhã do dia da viagem para Amsterdã. Levantou-se da cama e foi à janela: uma camada nostálgica de cores sombrias dominava grande parte daquela região da cidade de São Paulo. As nuvens negras provavelmente continuariam obscurecendo a metrópole até o fim do dia. A data: Quinze de Agosto de 2008, uma sexta-feira.
Ligou o rádio e colocou um CD: a faixa Sometimes, da banda My Bloody Valentine começou a tocar, e Manuela deixou-se envolver por todo aquele sentimento acolhedor e enlevante que o shoegaze da música proporcionava. Olhou o relógio de ponteiro pendurado na parede do quarto: eram quase nove horas da manhã. Cecília ainda deveria estar dormindo. “Vou deixá-la dormir até umas nove e meia...”, pensou Manuela. Deu uma bocejada sutil e partiu para o chuveiro.



A violência assolou a mente criativa do jovem Jorge no instante em que ele pousou os olhos na dilacerante cena: sua preciosa e amada namorada aos beijos com o garoto mais vulgar do colégio. Relacionavam-se com tanto fervor ali no meio da grama que Jorge viu o fogo do inferno dominar-lhe a alma. Olhou ao redor com fúria: a menos de um metro dele, havia uma barra de ferro que devia ter pertencido a alguma grade atualmente destruída. Apanhou-a e segurou o objeto com firmeza nas duas mãos. Uma incrível sensação de poder fazia, agora, par com o instinto violento que estava a apossá-lo. Fitou mais uma vez a cena da traição da namorada — descontrolado mas determinado, correu naquela direção. Quando os dois o viram se aproximar, rapidamente começaram a gaguejar tentativas de desculpas como “Não é o que você está pensando!” ou “Espera, eu posso explicar!”, mas isso, indubitavelmente, não ajudaria os traidores. Eles estavam nas mãos de Jorge, mas Jorge provavelmente não estava nas mãos de nenhum Deus.
— Vocês estão vendo essa barra de ferro que eu tenho aqui? — ameaçou Jorge — Observem bem. É com ela que eu vou manchar a minha alma e destruir a vida de vocês. E eu vou rir muito disso. Eu mereço a minha vingança. Se Deus não puder entender isso, eu prefiro acreditar no demônio!
Com força e intensidade, golpeou, no rosto, o garoto que beijava sua namorada, apenas fazendo-o sangrar. Não tinha o intuito de desacordá-lo logo de início, mas, na realidade, pretendia se certificar do total sofrimento do infeliz. Viu, de súbito, a namorada pegar o celular: imaginou Jorge que ela iria tentar chamar algum tipo de ajuda —, logo, acertou-a com a barra também, o que acabou desacordando-a, mesmo o golpe em si tivesse sido menos agressivo.
— Ahahahahahahahaha! — Jorge gargalhava e seu coração pulsava ferozmente.
Mais uma vez, bateu no garoto, e ria ao ver o sangue do desgraçado espalhar-se por todos os lados, espirrando com maestria e horror, o que seguiu mais uma seqüência de golpes, onde Jorge procurava acertar cada canto que acreditava serem merecedores de dor. Como último ataque, fincou, com toda sua força, a barra na palma da mão direita do jovem, atravessando-a e cravando-a no chão — e um grito doloroso, mortal e ensurdecedor ecoou por todas as extensões do colégio.


— Ei, Cecília! — falou Manuela, enquanto as duas tomavam café juntas na cozinha do apartamento — Tinha uma coisa que eu queria te perguntar a muito tempo. Na verdade, eu só perguntei pra uma pessoa antes, o Dante.
— Pode falar. Estou ouvindo.
— Tá bom... É uma pergunta esquisita, mas... Você já teve a estranha sensação de que... O mundo nos vê?
Cecília sorriu e respondeu com confiança na voz:
— Não é só uma sensação, Manu. O mundo nos vê. E pode ter certeza de que eu não estou sendo nem um pouco tendenciosa. O mundo nos vê de alguma maneira. Não só as coisas vivas, mas os prédios, as construções, os meios de transporte, as ruas, tudo isso pode parecer inanimado, mas existe alguma coisa ali... Alguma coisa tremendamente sinistra. Fico pensando se em Amsterdã também existe esse tipo de coisa. Quer dizer, existir, com certeza existe, só nos resta saber em que magnitude isso acontece. Mas vamos deixar essa conversa de louco pra lá, temos que nos apressar, vamos fazer as malas, amiga, vamos!
Cerca de vinte minutos depois as duas já haviam arrumado tudo e estavam prontas para sair (sim, uma das poucas vezes em que mulheres fizeram as malas tão rápido na história da humanidade!). Manuela usava um cativante vestidinho de listras horizontais brancas e azul-claras, enquanto Cecília vestia uma camiseta laranja onde a frase “Às vezes, sinto o mundo inteiro...” estava estampada, além de um sensual short branco que a cobria do fim da cintura até o início das coxas. Na entrada do condomínio, Jóhann as esperava na Ferrari Enzo prateada.
— Olá, meninas. Isso vai soar redundante, mas vocês estão mais lindas que nunca!
Todos riram. Entraram no carro e partiram.


Jorge abriu os olhos dentro do banheiro do colégio: procurava dentro da sua mente alguma solução para a enrascada em que havia se metido. “Seria mais fácil se eu tivesse matado os dois. Se bem que, como eu sumi com a barra de ferro, vai ser difícil eles provarem que fui eu!”, pensava ele; esfregou o rosto com as mãos e viu o sangue — rapidamente, pôs-se a ir à pia lavar-se. Sua vida havia desmoronado, indiscutivelmente. Não tinha mais motivos pra sentir felicidade, a não ser quando se lembrava da dor dos dois que havia flagelado.
— Aaaaaaaahhhh!!! — gritou sozinho, desesperado e enlouquecido.
Saiu do banheiro e começou a correr de olhos fechados, sem rumo, sem direção, esperando encontrar alguma coisa em seu caminho que o levasse a morte repentinamente; era covarde demais para um suicídio. Mas a verdade é que o pátio do colégio, naquele horário, era mais inofensivo que um ursinho de pelúcia. O máximo que conseguiria seria tropeçar em algum banco e ralar o joelho.
E foi basicamente isso o que aconteceu: Jorge desequilibrou-se ao esbarrar a perna esquerda num banco, acabando por cair pesadamente no piso de mármore branco. Quando ficou de pé de novo, viu um novo mundo. Era a cena mais dolorosa que já havia visto: logo ali, a meio metro dele, uma garota loira chorava, de joelhos, ao ver tanta desgraça junta no mesmo lugar — eram inúmeros corpos de pessoas totalmente distintas, um céu vermelho cobria a visão de seres humanos mortos de fome, sede, ou assassinados das maneiras mais cruéis possíveis. Jaziam ali, nos sonhos de Sara, aqueles que alguns poderiam chamar de injustiçados, mas isso dependia do ponto de vista. Se a morte era o fim ou não, não faria diferença, afinal, aquilo podia muito bem ser um penoso ataque de esquizofrenia.
Quando Jorge piscou, voltou ao mundo real.


Às 14h20min, a Ferrari de Jóhann avançava velozmente ao longo Avenida das Nações Unidas. Cecília e Manuela conversavam, ambas no banco de trás. São Paulo ainda vivia um dia esteticamente sombrio. Talvez fosse chover dali a poucos minutos, mas esses minutos também poderiam ser horas. Nada era certo.
Repentinamente, o islandês virou à direita numa rua que nem ele mesmo sabia o nome e acelerou numa velocidade mais rápida que antes — as garotas estranharam.
— O que aconteceu, Jóhann? Pra quê tanta pressa? — perguntou Manuela.
Ele apenas continuou acelerando. Uma Ferrari Enzo naquela velocidade chamava muita atenção (na verdade, em qualquer velocidade chamaria).
— Jóhann, o que está acontecendo? — insistia Cecília.
Eis que ele freou bruscamente: as duas meninas voaram um pouco para frente.
— Ali está — disse Jóhann, apontando para uma casa marrom consideravelmente esquisita do lado direito da rua — A base principal da nossa agência, a diretoria da Agência Eve. É ali que Leon, Isadora, eu e alguns outros assistentes, fazemos o que precisa ser feito. O avião particular de Leon está localizado no subsolo, debaixo do quintal dos fundos, em uma espécie de base secreta. Vamos lá, eles já devem estar nos esperando.
Jóhann estacionou a Ferrari ao lado de um Rolls-Royce Phantom no estacionamento da residência e desceu do carro — Cecília e Manuela desceram logo em seguida, carregando as malas (que Jóhann imediatamente fez questão de tomar delas para fazer a gentileza de levá-las ele mesmo); os três deram a volta na casa até ao quintal dos fundos. Todos estavam realmente ali, como Jóhann havia previsto. Leon, Isadora, Dante, Luiz, Marina e alguns assistentes. Todos.
— Já estava na hora! — exclamou Isadora ao vê-los.
Leon tirou do bolso uma chave aparentemente comum; dirigiu-a ao chão, onde arrancou um punhado de grama e, para surpresa de todos, via-se uma fechadura ali. Ele inseriu a chave e girou: o chão começou a tremer. A terra se deslocou levemente e era possível ver um buraco com uma escada: aquilo definitivamente era uma passagem subterrânea.


No ponto de ônibus, Jorge não sabia no que pensar. Olhou para o céu: alguns pingos caíam e uma tristeza imensa e abstrata engolia-lhe interna e externamente. Nos tropeços de sua vida, naquele instante choroso e revoltante, naquele instante tão emocionalmente grande, ele a viu mais uma vez. Os cabelos muito cacheados, o belo corpo, o belo rosto, mas acima de tudo, a sensação de independência e fascínio que ela causava. Marina. Eram conhecidos, faziam um cursinho juntos, à tarde. Apesar do muito amor pela namorada (que há algumas horas atrás havia acabado), Marina causava em Jorge uma espécie de paixão visual devastadora — mesmo que ele mal tivesse conhecimento da personalidade da garota.
— O-oi! — gaguejou Jorge. A garota acabava de se aproximar, sentando-se ao lado dele no banco do ponto de ônibus.
— Oi! — respondeu ela, sorridente mas receosa.
— E aí... Tudo bem? — o garoto estava consideravelmente “travado”. Não tinha intimidade com ela e não possuía muitos dotes comunicativos, isso prejudicava a conversa.
— Tudo sim... Só esse tempo que anda meio feio. E com você, tudo certo?
A chuva, sinuosa e ardida, ficava mais grossa — os dois estavam a salvo, debaixo da cobertura. Ao fitá-la bem nos olhos, Jorge mergulhava em profundo estado de encanto, afinal, eram aqueles olhos pungentes, castanho-claros, a coisa que me mais lhe chamava a atenção nela.
— Ah, comigo ta tudo normal também. Levando a vida.
A água despencava ferozmente do céu, a emoção e a tristeza cresciam juntos com o volume da chuva, Jorge estava estremecendo por dentro — não por motivo de a garota estar ao seu lado, mas por um motivo maior, por alguma razão que fazia daquele espaço de tempo algo extremo, entranhável, apesar de tudo que dissesse respeito à sua racionalidade estivesse sendo deixado de lado naquela cena. A data: Oito de Setembro de 2008.


Todos desceram aquela escada atípica e deram de encontro com um grande salão razoavelmente escuro onde se visualizava um avião — ou uma nave — de tamanho médio, cercado por alguns computadores e algumas alavancas.
— Aqui é onde fazemos os sapos fumarem até que explodam — disse Leon — e isso não é uma piada. Nós não somos pessoas totalmente boas, infelizmente, mas lutamos por uma causa maior, uma boa causa maior, que é salvar Sara.
Ao ouvirem aquilo, os jovens rapidamente foram remetidos ao encontro que haviam feito dois dias atrás, onde Marina havia revelado-lhes alguns segredos um tanto quanto questionáveis, mas indiscutivelmente valiosos. Apesar da dúvida, uma coisa tinha que era óbvia: Sara não poderia ser a única coisa pela qual Leon e os outros se interessariam. Era uma questão de lógica, nenhum ser pensante mantém a sua atenção direcionada a somente uma única coisa durante toda a sua existência; isso é inconcebível, de fato.
Leon fez um sinal para os assistentes: os quatro foram, cada um, para os quatro cantos do salão ativar as alavancas. Um ruído alto e mecânico irrompeu no ar. A superfície sobre as suas cabeças abrira-se em sua totalidade, e todos puderam ver o céu. O avião, no entanto, começou a erguer-se levemente sobre uma plataforma que levantava. Leon, então, fez o pedido final daquele “arco”.
— Vamos, subam meus jovens. Está na hora. Estamos diante do futuro. O futuro mais importante que vocês conhecerão. Entram e esqueçam-se do passado. Não acreditem, não confiem, duvidem, mas não deixem de viver!
E, como se todos de repente se sentissem totalmente expostos diante de um ser que aparentemente lia a incerteza em suas mentes, disseram impulsivos “Dane-se!” mentais para si mesmos e partiram rumo à capital holandesa. Era o dia que precederia uma história num mundo turbulento — não que a Holanda fosse um país turbulento, mas as prodigiosas e afligentes lutas psicológicas tinham força suficiente para representar esse mundo.
A data: Quinze de Agosto de 2008. O dia da viagem para Amsterdã.

9 comentários:

Anônimo disse...

Capítulo que discorre de uma maneira original e encantadora. Valeu a pena esperar.

Anônimo disse...

Com certeza... cada vez mais seu fã. ^^
um dos capitulos mais legais que eu já lí dessa sua historia que eu ainda quero ver publicada. ^^
valew a espera...

(ei... nao desisti das aulas de redação.. a ultima que eu fiz foi um desastre >_<)

Anônimo disse...

bom cap, e esse Jorge eh nervoso msm xD

Anônimo disse...

pô, quanto às aulas de redação, Matheus, isso é coisa que vem com o tempo (eu nem diria que vem com a leitura, pq faz tempo demais que não leio um livro inteiro), mas vem com o seu próprio amadurecimento, sei lá, vc vai conhecendo palavras, vai começando a visualizar melhor as cenas, a inspiração pode demorar pra vir, mas quando ela vem, o texto se escreve praticamente sozinho!

Anônimo disse...

Muito bom, o sonho da Sara foi foda

Anônimo disse...

cara o Lost manda bem d+ ^^

Anônimo disse...

umm... vou começar a tentar fazer uns textos melhores nas aulas de redação... talvez sai alguma coisa. ^^

Jessica Anastacio disse...

[i]chegou a minha vez!!!
ficou bom, espero q vc não fique enchendo o saco so pq recebeu elogios!!
so tem uma coisa: se eles viajaram dia 8 de agosto como jorge encontrou a marina em setembro?
Beijos..
BB kkkkkkkkk

Anônimo disse...

Jéssica: o capítulo foi feito exclusivamente com a intenção de confundir o leitor — mas os mais atentos perceberão certas coisas. Lembra da carta de Jorge escrita em Outubro? Está tudo relacionado, as duas coisas acontecem, mas em tempos diferentes.