sexta-feira, 25 de julho de 2008

Capítulo 9 - Aurora - Parte 1

Três e quarenta da tarde, sexta-feira. O dia estava exaustivamente quente. Já haviam se passado duas semanas desde que Manuela e Dante haviam se separado, no dia 24 de Junho.
— É aqui! — exclamou Cecília ao parar o Fiat Uno que dirigia na frente da (razoavelmente) grande casa de seus amigos na pequena cidadezinha próxima de Itu: Cabreúva — É aqui que eles moram, Manu!
— Até que enfim! — comentou Manuela — Tá certo que eu não sei dirigir, mas você no volante é uma perdição. Não vou falar que foi graças à Deus que chegamos à salvo, mas acho que, pelo menos dessa vez, ele deu uma ajudinha!
— Haha! Você é mesmo uma mal-agradecida!
— Estou brincando! Só brincando, Cecília!
Ambas desceram do veículo. Abrindo o porta-malas semi-emperrado, Cecília tirou uma grande mochila e pôs nas costas. Manuela apanhou uma mala de tamanho mediano e que, de quebra, tinha rodinhas. As duas encaminharam-se até o grandioso portão de entrada (que era grande, mas com uma certa "aura" de simplicidade — e tocaram a campainha. Esperaram. Manuela olhou para o sol escaldante; Cecília observava Manuela e via o suor a escorrer quase que sensualmente pelo rosto da amiga. "Ela é tão... Apreciável!", pensou Cecília, a admirar a beleza da garota ruiva mesmo num momento como aquele. Manuela baixou os olhos e encontrou os de Cecília a observá-la tal qual estivesse hipnotizada.
— O que... foi? — perguntou Manuela.
— N-nada! — falou Cecília, corando e desviando o olhar imediatamente. Virou-se para a casa e pôde ver alguém a atravessar o vasto quintal gramado vindo em direção ao portão. Era um homem franzino e misterioso, vinha apoiando-se numa bengala e, mesmo naquele calor que beirava o título de insuportável, usava um chamativo sobretudo marrom.
— Ele é... Um dos seus amigos? — perguntou Manuela à Cecília.
A outra, muito séria, respondeu:
— Não. Com certeza não.
O homem aproximou-se do portão e abriu-o. Olhou para as duas belas garotas e sorriu.
— Sejam bem-vindas. Nós estávamos esperando-as.
Cecília, confusa, não sabia exatamente o que perguntar. Manuela, então, foi a primeira a falar:
— O senhor, por um acaso, mora aqui ou é parente de alguém?
— No momento, estou morando aqui. Chamo-me Jóhann. É um prazer vê-las depois de tanto tempo. Sem mais delongas, eu apreciaria muito se as duas moças entrassem o mais rápido possível. Lá dentro, garanto-lhes, é muito mais seguro do que aqui fora.
Cecília tentou se lembrar de quando havia sido a vez em que havia visto este homem, mas tinha uma certeza quase absoluta de que jamais o vira antes. Ele virou-se e começou a caminhar freneticamente em direção à casa. As duas garotas o seguiram. Tratava-se de uma construção peculiar: provavelmente com uma área de cem metros quadrados; era alta, com dois andares, telhado cinza, as paredes de fora pintadas impecavelmente de branco: era algo externamente encantador, definitivamente. Jóhann abriu a porta: logo de cara, via-se a sala de estar — e ali encontravam-se um consideráveis pessoas.
— Creio que vocês duas... — começou a falar Jóhann — Já conhecem alguns desses indivíduos.
E os indivíduos eram quatro: Isadora, Luiz, Dante e Marina. Estavam todos ali confortavelmente sentados no espaçoso sofá branco. E não havia nenhum sinal dos verdadeiros donos da casa, os amigos de Cecília.
— Eu não estou entendendo nada. — disse Cecília — O que eles estão fazendo aqui? Onde estão as pessoas que moram nessa casa realmente?
Uma risada cômica começou a irromper os ares. Isadora levantara-se do sofá e ria, ria profundamente, enquanto fumava um cigarro. Foi até Cecília e parou diante dela.
— É muito divertido ver quando as pessoas ficam assim perdidas, sem saber de nada. Eu não consigo evitar, eu rio, rio como se tivesse ouvindo a piada mais engraçada do mundo. Mas você não merece ser motivo de piada, pequena Cecília. Você merece saber. Os seus amigos não moram mais aqui.
— Como assim não moram mais? Eu liguei pra cá pouco tempo antes de sair de casa. O Mário atendeu e me disse que estariam esperando exactamente aqui! Eu não sei o que está acontecendo, mas isso não está me cheirando nada bem.
— Hihi! Haha! Hahahaha! Eu não devia rir num momento desse, não devia! Até porque a verdade é dura. Eles estão mortos, Cecília. Mortos!
Cecília foi bombardeada; não acreditava naquilo, mas sentia que poderia muito bem ser verdade, já que estava frente a frente com pessoas que não deveriam estar ali.
— Não é possível... Isso não aconteceu!
— Ninguém morreu. — falou Jóhann — Eu vou explicar à vocês tudo que vocês vão precisar saber daqui pra frente.
Jóhann, assumindo as rédeas da situação, pediu que Cecília e Manuela se sentassem. Ao mesmo tempo lançou um olhar repreendedor à Isadora. Um silêncio incômodo perdurou naquela sala durante dois minutos. Jóhann se sentou numa poltrona, virada de frente para o sofá branco onde todos estavam sentados. Isadora pegou um banquinho e posicionou-se ao lado do islandês. Era hora das explicações. Todas elas.
— Antes de tudo — iniciou Jóhann — Gostaria de apresentar às duas garotas, um de nossos pupilos, Luiz — e apontou para o rapaz de cabelos compridos — Luiz, essas são Cecília e Manuela. Vamos aos esclarecimentos. Comecemos pela jovem Marina que já sabe de praticamente tudo, e que, aliás, deve ser aplaudida aqui devido à sua atuação no encontro que realizou com as outras duas moças aqui presentes no Terminal Bandeira. Aquilo foi brilhante, afinal, dizer que havia fugido de casa por motivos familiares e ser convincente neste argumento da maneira como você foi (já que os reais motivos eram outros) é uma tarefa que apresenta certa dificuldade para que seja realizada.

Jóhann referia-se ao encontro marcado por Marina no dia 24 de Junho, dia em que havia sido vista por Cecília e Manuela (e que também havia sido raptada, ao anoitecer, por Jóhann e Isadora), deixando apenas a metade de uma foto, com o local, o dia e o horário do encontro: às 17hs, no Terminal Bandeira, seis dias após o ocorrido. E, de fato, Manuela e Cecília compareceram no dia marcado — no caso, era 30 de Junho. Porém, esse acontecimento será mais detalhadamente tratado nos próximos capítulos.

— O que podemos dizer da jovem Marina? — continuou Jóhann — Ela é a paixão-mor de Isadora, e, como se não bastasse, é a terceira pessoa mais inteligente aqui presente (já que eu e Isadora somos o primeiro e o segundo lugar, respectivamente). Ela chamou nossa atenção pela primeira vez no dia de seu aniversário de nove anos; de lá para cá, não desgrudamos mais os olhos dela. A maioria aqui deve se perguntar como nós iríamos prestar atenção nela sem que a própria percebesse. É simples. Eu e Isadora somos deuses dentro dessa realidade inconstante. Talvez não deuses completos, já que nos falta a onisciência, mas temos uma quase completa onipresença e uma onipotência bastante desenvolvida — sim, meus caros, nós podemos fazer quase tudo. Voltando...
— Espera aí...! — interrompeu Manuela — Você quer que a gente acredite nisso de verdade? Que palhaçada é essa agora?
— Eu posso mostrar. Talvez não funcione da maneira mais eficiente possível, mas eu posso mostrar.
— Estou olhando.
Antes que Manuela pudesse piscar os olhos, Jóhann havia sumido da poltrona e estava, agora, sentado ao lado dela. Outro instante depois, estava de volta à poltrona. Boquiaberta, a garota não tinha mais como negar. Sentia medo agora, e talvez por isso, preferiu esperar que o homem terminasse as explanações.
— Creio que lhe convenci. A você e à sua amiga Cecília. Os demais já estão devidamente à par no que diz respeito às nossas identidades. Eu poderia retornar à minha fala agora?
— S-sim.
— Perfeito. Bom, como eu ia dizendo anteriormente... Isadora, será que você se lembra... Onde eu estava mesmo?!

sábado, 19 de julho de 2008

Capítulo 8 - O Sonho

Na triste madrugada do vigésimo quarto dia do mês de Junho daquele ano, segurando uma garrafa de vodka na mão e olhando fixamente para o velho prédio do colégio estadual onde havia estudado no ensino médio, Dante, horrorizado por saber que teria que aturar a si mesmo o resto da vida, estava quase embriagado.
"Que merda! Que merda! Será que a culpa é minha? Será que eu mereço que a culpa seja minha?" — e foram-se mais alguns goles de vodka goela abaixo. Dante começou a andar, cambaleante e desordenado, se segurando nas grades que cercavam o colégio, bebendo vodka a cada intervalo de quinze segundos, sem nada na cabeça; não, na verdade havia uma única coisa em sua mente: Manuela, a ruiva. Já nem importava-se mais com a morte do pai. Só a vermelhidão de Manuela tomava-lhe conta do pensamento. Tropeçando em alguma coisa, o garoto foi ao chão. E alguma poucas lágrimas foram também.
Com esforço, ficou de pé mais uma vez. Seu estômago começou a revirar, a ânsia veio e o vômito saiu. Mais lágrimas foram junto. "Não tenho com quem recorrer! Não tenho com quem interagir!" Sentou-se no chão, de costas para a grade. Deu uma última boa golada de vodka e levantou a cabeça para o céu. "O poço ainda pode ser mais fundo... Não é?" E adormeceu ali instantaneamente.
Assim, o jovem Dante teve o sonho, o sonho que mudaria sua vida. Ele via-se numa vasta e interminável superfície branca — sobre a sua cabeça, um imenso céu num tom laranja-claro; subitamente, uma mão emergiu do solo alvo e, um instante depois, um corpo inteiro surgia diante de Dante. Era um velho esquisito — nem bem vestido, nem mal vestido — , com longos cabelos grisalhos, uma face estática e peculiar, dono de um considerável porte físico, devia ter por volta de um metro e oitenta e cinco de altura. No entanto, o que mais chamava a atenção nele era a estranha marca ou cicatriz em forma tortusamente espiral que tinha na testa.
— Olá! — disse o velho — Meu nome é Leon. Talvez você não faça idéia de quantas pessoas existam no mundo. Talvez você não faça idéia do tamanho de seu potencial. Talvez você não faça idéia de como seja a morte. Mas é importante que você comece a pensar sobre essas coisas.
Leon colocou as mãos em cima dos ombros de Dante.
— Por... quê? — perguntou o garoto.
O velho, dessa vez tirando as mãos que estavam sobre os ombros de Dante, riu. Seguidamente, proferiu:
— Isto não é um sonho, se é que você não percebeu. Você é um ser humano comum, como tantos outros bilhões. Tem noção? Bilhões! Isso sem comparar com o tamanho do universo inteiro... Você é menos que nada, meu rapaz! Pelo menos desse ponto de vista, mas... Não há nada que a mais insignificante pulga não possa fazer se nela houver determinação e força de vontade, sabe como é, é chato dizer isso mas muitos daqueles livros de auto-ajuda que suas tias lêem podem ter um certo fundo de verdade... Porém, deve-se dizer aqui que a morte, tanto quanto a vida, é uma peça misteriosamente essencial no que diz respeito à caracterização absoluta de um ser humano. Compreende? Juntar essas três questões — a insignificância inegável, a determinação inesgotável e a morte inevitável — e trazê-las a você é um favor que estou fazendo. Guarde isso com sabedoria.
Houve um clarão. O sonho terminara. Dante abriu os olhos e deparou-se com o nascer do sol. As palavras de Leon ainda ressoavam em sua mente: "Guarde com sabedoria..." Levantou-se e, lembrando-se das três questões, pensou consigo mesmo: "Não, Leon. Seria egoísmo se preocupar somente com essas três questões dentro desse mundo tão diverso. Contudo... Eu estaria sendo muito mais egoísta se continuasse nessa minha tentativa de querer esquecer os meus problemas. Vou usar a pouca sabedoria que tenho e vou, um dia, se isso for possível, retribuir esse seu favor!"
— Pelo jeito você já entendeu. — uma voz acabava de chegar aos ouvidos de Dante. Era Leon, em carne e osso, sentado bem ali ao seu lado, com as mesmas roupas, com a mesma aparência, com a mesma espiral na testa.
— O quê? Entendi o quê? — interrogou Dante, surpreso.
O velho levantou num salto, dizendo:
— Você entendeu a si mesmo. Apenas isso. — virou as costas para Dante e, acenando com a mão direita, despediu-se: — Até a próxima!
— Espere! — gritou Dante — Como você sabia...? De onde você veio? De onde você veio, Leon? Quem é você realmente?
— Sou só um amigo, mas não se preocupe com isso no momento. Por hora, pense bastante em como irá retribuir o favor que fiz a você!
O velho então começou a caminhar com estranha leveza, mas seus passos eram incompreensivelmente rápidos. Dante ficou apenas observando-o se distanciar, percebendo ao mesmo tempo que, a partir daquele momento, a sua "caracterização como ser humano" nunca mais seria a mesma. "Obrigado... Leon."

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Capítulo 7 - A Ópera Dos Deuses Contemporâneos

Foi por volta das onze e quinze da noite que Jóhann, Isadora e Marina chegaram, locomovidos pelo Celta Preto, na residência do jovem Luiz. Era uma pequena casa no simples Bairro Vaz de Lima, possivelmente uma das mais antigas de lá, o portãozinho amarelo parecia ter sido maldosamente maltratado pelo tempo. Isadora foi a única a descer do carro e, como não havia uma campainha, colocou as mãos entre as grades do portão e bateu palmas.
— Olááá! — gritou.
No carro, Marina, no banco de trás, já mais calma, questionava Jóhann sobre o local onde estavam.
— É aqui, Marina, que um garoto chamado Luiz mora. Ele toca folk e também tem uma certa experiência com o jazz. É, sem dúvida, uma das pessoas mais incríveis que já conheci.
— Entendi... Mas, o que vocês vieram fazer na casa dele esta hora da noite? — Marina tinha uma voz meiga e perspicaz. Era quase um deleite ouvi-la falar.
— Basicamente, viemos ver se está tudo bem com ele. E nós sabemos que o mesmo nunca está dormindo nesse horário.
— Entendo, entendo. Mas, qual seria, especificamente, a "conexão" que vocês tem com ele?
Marina constatou que sua pergunta havia sido bastante certeira. Ou Jóhann iria se esquivar da resposta ou lhe daria sem pestanejar. E o que ele fez foi mais ou menos uma mistura das duas coisas.
— A nossa conexão com ele, bela Marina, é aproximadamente a mesma conexão que temos com você. A única diferença é que ele se lembra de nós.
Marina riu.
— Você não está sendo muito claro. Por que não me diz, então, qual seria a minha conexão com vocês!?
— É, simplesmente, o fato de que... Ah, veja, ali está ele!
Jóhann apontara para o portão amarelo, cuja a fechadura estava sendo aberta por rapaz alto, magro e com longos e lisos cabelos castanhos. Dentro do veículo, Marina não podia ver o que ele conversava com Isadora.
— Ele é alto... — comentou Marina — Só que não chega a ser tão grande quanto Isadora. Aquela mulher é bizarra!
— Realmente... — concordou Jóhann — Bizarra mas genial, isso eu lhe garanto.
Ensimesmada, Marina tentou, minuciosamente, ler os lábios de Luiz e Isadora. Seus olhos pungentes e ágeis não deixavam quase nada escapar, mas a conversa parecia trivial. Desviou o olhar, mirando, desta vez, os olhos de Luiz: eram olhos cansados, com alguma cor indistinguível daquela distância, entretanto, havia uma certa falta de mesmice naquele olhar que deixou Marina estranhamente fascinada. No momento em que ela sentia esse fascínio, os olhos dele se encontraram com os dela e tudo estremeceu. Apesar disso, a sensação que Marina sentia não era exatamente boa...
— Eu o conheço. De alguma forma, eu o conheço.
— Sim, de fato — confirmou Jóhann, para surpresa da garota — Se não estou equivocado, esta é a terceira vez em que você o vê.
— Terceira?
— Exato. Na verdade, essa é a primeira situação em que você está vendo-o com clareza, já que nas outras duas ele sempre esteve envolvido por uma multidão de pessoas... A primeira vez foi no seu aniversário de nove anos e a segunda dentro de um trem.
Marina, em estado de assombro e perplexidade, interrogou Jóhann com acidez:
— Excelente, excelente. Você vai ficar me deixando com cada vez mais dúvidas e vai continuar não explicando nada. Como é possível que você conheça mais detalhes da minha vida do que eu mesma? Pára de hipocrisia, senhor Jóhann, pára de fugir, isso não é justo, eu mereço uma explicação!
O islandês, fingindo não ter ouvido nada, apanhou um CD no porta-luvas e inseriu-o no rádio. Segundos depois, a ópera Don Giovanni, de Mozart, começou a tocar.
— Adoro esta — disse Jóhann — É a obra-prima de Wolfgang, na minha opinião.
A garota dos cabelos muito cacheados revoltou-se com tudo aquilo. Tentou sair do carro, mas as portas estavam travadas. Juntou todas as suas forças no punho direito, fitou a janela da porta do lado esquerdo do banco de trás e, com bastante velocidade, esmurrou o vidro — ouviu-se um auto ruído; estilhaços de vidro espalhavam-se por todos os lados; a supostamente delicada mão de Marina sangrava, e ela, num ato inacreditável de agilidade, saltou para fora do Celta. Jóhann mal pode pensar em tentar segurá-la.
— Não sei quem vocês são — bradava Marina, fora do veículo, enquanto se preparava para correr — E, mesmo achando que seria interessante saber, prefiro não confiar!
E disparou no meio da escuridão da noite.
Meio segundo depois, Isadora olhou para Jóhann rapidamente, como se esperasse algum sinal de confirmação por parte dele. Ele, mal mexendo os lábios, murmurou:
— Faça.
E o que Isadora fez foi humanamente impossível. Ela abriu a boca e proferiu o nome "Marina" numa intensidade de decibéis tão estrondosa e ecoante que, inevitavelmente, acordaria qualquer ser humano que estivesse dormindo numa área de duzentos e cinquenta metros quadrados. Em seguida, soltou um "Volte, garota!" mais ensurdecedor ainda. Marina virou a cabeça para trás, apavorada, e tomou o maior susto de sua vida: Isadora estava bem ali, olhando-a seriamente, a menos de um metro de distância dela. Era impossível que a mulher tivesse conseguido alcançá-la em tão pouco tempo. Marina corria rápido. Só havia uma resposta.
— Vo... Você...? Como... ? — Marina via a coisa mais inconcebível do mundo acontecer diante de seus olhos.
— Volte apara o carro, querida. Por favor. — pediu Isadora.
— E... Espera aí... O que está havendo aqui? Como você veio parar aqui? Você estava lá com o tal do Luiz no portãozinho amarelo agora mesmo...
— Eu apenas escolhi onde eu quis estar.
Marina viu-se, mais uma vez, paralisada por aquele rosto extravagante de Isadora que ficava a encará-la com rispidez.
— Mas... Como você consegue fazer isso? Como você consegue ter esse poder?
A mulher dos cabelos coloridos respondeu:
— Em milênios, raramente vi olhos tão luminosos, tão profundos, tão emocionantes e tão atemporais como os seus. Você é uma dádiva, jovem Marina, uma verdadeira dádiva. A realidade é, de certo modo, uma ilusão, minha querida, e Jóhann e eu somos... Bom, nós somos deuses dentro dela!

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Capítulo 6 - A Vez Sombria de Uma Sombra

A poeira e o sol: aquele sol desenhado na parede do quarto de Manuela, um desenho com traços rudes mas simpáticos, possivelmente esperando por retoques finais. A garota de cabelos ruivos ainda segurava a foto da enigmática Marina nas mãos, tentando entender o que fazia aquele rosto ser a coisa tão profunda e chamativa que era. Cecília, na cozinha, cozinhava ovos. Eram quase dez horas da noite, ainda daquele mesmo dia.
Manuela suspirou longamente e imaginou, de repente, o que Dante teria feito desde o momento em que haviam se separado no ônibus. "Do jeito que ele é, ou fez alguma besteira, ou está chorando no travesseiro — o que não deixa de ser uma besteira também!", pensou a garota. Pôs as duas mãos no rosto, suspirou mais uma vez e foi tomar um banho.
— Cecília! — chamou — Vou ir pro chuveiro... Se eu demorar muito, me avise!
A amiga exclamou uma resposta positiva, rindo.
A água quente escorrendo pelo seu corpo nu dava-lhe um prazer peculiar. Era uma sensação acolhedora, o calor da água a fazia se sentir segura; sim, segura, mas, simultaneamente livre, livre para criar mundos e situações em sua mente. A criatividade transbordava. Toda a beleza, oculta ou não, das coisas, parecia desmergulhar em todas as direções. E começavam a vir...: primeiro um rinoceronte sonolento; depois, uma mulher com roupas esquisitas, rodeada por encanamentos; uma geladeira apodrecida; um homem que quase se assemelhava a um mendigo; e, por fim, uma gama amontoada de situações aparentemente variáveis, onde tudo tendia a acabar em explosões, tragédias e destruições. Mas, subitamente, Manuela não viu mais nada: só uma imensa escuridão, tão grande que, de quebra, a fez perder a consciência.
Cecília, ouvindo um barulho alto vindo do banheiro, correu até lá, abriu a porta do boxe e se deparou, horrorizada, com Manuela ali, caída no piso, convulsiva.
— Manu! Manuela! — Cecília gritava, desesperada. Desligou o chuveiro e, chorando, esperou que as contrações da amiga parassem, o que não aconteceu: a ruiva continuava a sacudir-se involuntariamente — Manuela, por favor, volta! Volta pra mim!
Cerca de cinco minutos se passaram e, aliviada, Cecília cobriu Manuela com um roupão ao ver as contrações se acalmarem. Levantou-a e colocou-a na cama do quarto, sentado-se na beirada. Observou bem o corpo desacordado da garota: sempre havia sentido uma certa atração física por ela. Um calor furtivo tomou conta de Cecília naquele instante. Sorrateiramente, subiu na cama, posicionando-se de bruços sobre Manuela, ficando a vislumbrar, bem de perto, aquele rosto doce e belíssimo envolvido pelos cabelos vermelhos meteóricos (mas sem o lado efêmero do significado desta palavra).
— Nariz bonitinho... — sussurrou Cecília — A cor da sua pele... Esses cabelos tão apaixonantes... Essa sua boca... Não sei se seria justo fazer isso agora, mas... Eu não consigo evitar.
E, assim, Cecília beijou com suavidade os dóceis lábios de Manuela, dando-lhe, em seguida, um beijo carinhoso na testa. Desceu da cama e, fechando a porta do quarto ao sair, murmurou:
— Volte logo, garota vermelha.
Cecília foi até a sala, e, no meio daquele silêncio, a campainha tocou.
— Quem é? — perguntou ela.
Uma voz masculina do outro lado da porta respondeu:
— Sou eu! Dante!
Ela abriu a porta e viu Dante todo encharcado e sem fôlego.
— O que foi? — ela o questionou.
— Preciso... — ele parou para respirar — De ajuda.
— Por quê? O que aconteceu?
— Não é um bom momento pra falar. Não agora.
— Então, você não entra.
Ela foi fechando a porta, mas Dante segurou-a.
— Cecília, por favor. Eu fiz uma besteira enorme e não tenho como contar com ninguém, só com vocês duas. Por favor. É a última coisa que eu peço.
— Dante... eu entendo. A gente se coonhece há um bom tempo, e você sabe que nós te ajudaremos sempre que for necessário. Mas, no momento, não seria bom que você e a Manuela se vissem de novo, então, a não ser que você abra o jogo de uma vez, é melhor ir embora.
O garoto fechou os olhos, pensou e decidiu falar:
— Está bem. Eu... eu acabei de matar o meu pai!
— O quê? Você endoidou?
— Eu o matei, Cecília, eu o matei! Mas foi em legítima defesa! A arma era dele, eu o matei e joguei ela fora!
Razoavelmente chocada, ela dexou-o entrar.
— Tá bom, Dante, tá bom. Hoje eu tive um dia pesado, então, me explique uma coisa.
— Estou ouvindo.
— Como você pode provar que tudo isso que você me falou não passa de um pretexto pra que você possa ver a Manuela de novo?
— O quê? De onde você tirou isso?
— Dessa sua cara cínica. Não sei como ela te aguentou todo esse tempo. Cadê o seu caráter, garoto?
— Depois, quem endoidou fui eu... Se você quiser, eu te levo pra ver o cadáver dele agora mesmo!
— Não precisa.
— Ah, não?
— Não. Eu posso ver o sangue.
— Sangue? Onde?
— Em toda parte. O mundo é feito de sangue, Dante. O seu pai merecia morrer e você sabe disso. Pare de tentar controlar a situação. As coisas vão acontecer, e relaxar é a melhor coisa que você pode fazer no momento.
Ela segurou a mão dele, ambos sentaram-se no sofá e olhou-o nos olhos profundamente.
— Vá embora. Fique frio. Você não tem o que temer, nem mesmo a morte. Todo mundo morre um dia. E todo mundo sabe disso.
Eis que Dante se levantou e sem falar palavra alguma, caminhou até a porta e saiu, fechando-a devagar.
Cecília se espreguiçou, respirou fundo. E sorriu.