sábado, 14 de março de 2009

Capítulo 17 - Todos Os Ventos

O ônibus parou bruscamente no ponto graças à sinalização atrasada de Jorge. Ele e Marina subiram naquele monstro poluidor indiscutivelmente útil. Sentaram com calma em dois bancos vazios no fundo — o garoto ficou do lado da janela. Ele fitou a janela: as gotas bruxuleantes escorriam pelas vidraças do ônibus; o rapaz fechou os olhos, suspirando ruidosamente.
— Jorge — chamou Marina, ao lado dele — Você parece meio tenso. Tem algo te incomodando? — e inclinou a cabeça para olhá-lo nos olhos.
Ele virou-se para ela rapidamente, desviando o olhar em seguida, rindo e corando. Respirou fundo e encarou os próprios joelhos.
— Marina — ele exalava uma firmeza incomum na voz — Escuta...
Um punhado de vento entrou por alguma fresta. Jorge arrepiou-se, ao mesmo tempo em que um cheiro doce de leite quente da sua perspicaz infância invadia-lhe a alma. Marina também sentia algo parecido, mas numa proporção menor.
O mundo inteiro, sussurrou ele, mentalmente. E mergulhou naquela galáxia de emoções por um tempo idiotamente curto, mas que valia por toda a eternidade.
— Jorge?
E Jorge voltara. Os joelhos ali na frente de seus olhos, e Marina, ao seu lado, aguardando sua fala.
— Ah...! Não é nada! — e riu para si, de olhos fechados, com vergonha da própria covardia.
Mas, de súbito, ela pôs a mão sobre o braço dele — aquela mão tão delicada e ágil. E fria!
— Jorge, veja bem... — ela falava com uma graciosidade fora do comum — Eu não sei o que você tem, mas, consigo entender que talvez esteja passando por um momento conturbado — ela tirou a mão do braço de Jorge e, para o total assombro do rapaz, pôs entre os cabelos negros de Jorge — Por isso, relaxe. Seja o que for, vai passar.
Enquanto a Av. Brigadeiro Luís Antônio ficava para trás, ele olhou-a nos olhos, assustado, mas em deleite. Um sorriso angelical vindo dos lábios dela fez com que suas estruturas desmoronassem e Jorge desabou em lágrimas vertiginosas, ao passo que um segundo punhado de vento invadiu o interior do ônibus, dessa vez com certa quantidade de vapor gélido, enriquecido com aqueles aromas memoráveis daquelas esquinas que viramos uma única vez na vida.
— Esse vento — murmurou Jorge, ainda com o rosto ensopado de lágrimas — É o vento daquele dia... Posso ver tudo. Elas, ali. Sorrindo, retardadas. Minhas primas. Lindas, apesar de tudo, mas eu nunca morreria por nenhuma delas, essa é a verdade... Talvez a Ana, mas não, prefiro me recusar a admitir isso. Estou lá...
A garota dos cabelos muito cacheados, confusa, segurou o rosto de Jorge com a mão direita, dizendo num tom mais sério do que todas as outras vezes:
— Você não está bem, Jorge. Não mesmo. Não entendo o que diz, mas é melhor que você mantenha-se firme, aqui, no presente. Lembrar do passado pode ser muito bom, mas arrastar-se de volta para ele é um tanto arriscado. Fique aqui, comigo. Tudo bem?
— Minha mãe... Ela sabe de tudo isso, ela sente também. Eu não posso ficar aqui.
— Você precisa! Idiota! Você faz parte desse mundo, desse tempo! — e, puxando de leve os cabelos dele, empurrou-lhe a cabeça no vidro da janela, falando com um tom aridamente divertido: —
É tão difícil entender isso?
O garoto se assustou, voltando a si, envergonhando-se pesadamente. Esfregou as mãos no rosto, deu um suspiro esganiçado e voltou-se para Marina:
— Será que... seria muito difícil se nós dois tentássemos excluir isso da memória?
Marina sorriu, desviando o olhar, balançando as pernas como uma criança dócil.
— Eu já vi muita gente meio problemática — respondeu ela — Relaxe.
— Obrigado — agradeceu Jorge, fitando a janela mais uma vez.
Do lado de fora, prédios cinzentos e impiedosos. Prédios..., pensava Jorge,
A eternidade do mundo está nisso. Nisso e no vento.
O tempo passava. Escurecia em São Paulo, cidade das luzes, das multidões, do movimento, das misturas, das cores, das emoções, das injustiças, dos ventos.
A cidade de todos os ventos.
— O Terminal Princesa Isabel está próximo — comentou Marina, com ansiedade — Vou precisar comer algo urgentemente!
— Idem! — disse Jorge, em meio a um sorriso distorcido.
Marina parecia distraída, agora, ao estudar o rosto do garoto.
— Eu não sei por quê... — começou ela, de súbito, levando a mão ao queixo num gesto forçado de parecer engraçada.
— Hum?
— O seu olhar... me lembra alguém. Esse olhar introspectivo, mas esperto, chegando a ser violento até. São castanho-esverdeados, mas parecem vermelhos, lá no fundo. Você é muito parecido com a Manuela.
Jorge, involuntariamente indiferente, questionou:
— Manuela? Quem é?
— Era — corrigiu Marina — Não tenho notícias dela há um bom tempo. Mas os momentos que vivi perto da ruiva foram muito singulares. Um ser humano ímpar. Talvez o mais incrível que já conheci. Ela tinha uma brutal, apesar de artificial, cabeleira vermelha, maravilhosa, perfeita. Não era um vermelho-alaranjado, tampouco um vermelho-vinho. Era vermelho, vermelho de verdade! Eu não saberia dizer, apesar de tudo, se ela era realmente tão especial quanto parecia — suspirou pensativamente — Mas, de qualquer forma, ela era totalmente contagiante. Ah! Chegamos no Terminal, Jorge!
Lá fora, haviam pessoas enfileiradas esperando pelos ônibus, impacientes, cansadas; Jorge e Marina desceram juntamente com os outros passageiros. Já passavam das 19h — o ar era fresco e animador. Os dois caminharam, sem pressa, até o quiosque no centro do terminal: tudo cheirava àquelas mini-pizzas de sabor questionável, mas isso só acentuou mais ainda a fome de ambos. As luzes amareladas pareciam se entrelaçar com o resto da realidade, mesmo que tudo não passasse de uma fétida noite comum. Jorge tentou não parecer tão emocionado por estar perto de Marina por todo aquele intervalo de tempo.
— Um pão de queijo, por favor! — exclamou Marina para a atendente do quiosque.
— Outro pra mim, por favor! — disse Jorge, quase em seguida. Apoiou-se de leve e centralizou a face de Marina em sua visão. A atendente logo veio com os dois pedidos. Jorge fez questão de pagar ambos.
— O que foi? — perguntou Marina, ligeiramente constrangida.
— É que... Talvez não seja da minha conta, mas, eu me pergunto, onde você esteve durante todos esses dias em que faltou no curso?
Marina, com extrema velocidade, discorreu uma mentira, evitando qualquer coisa que pudesse estar relacionada com a viagem para Amsterdã.
— Tive que fazer uma viagem de emergência. Alguns problemas graves na família. Sabe como é. — e terminou a frase com o clássico sorriso vivaz.
— Entendo — suspirou Jorge, não convencido. Continuou olhando-a, ainda sem dar nenhuma mordida no pão de queijo, enquanto ela comia o dela com voracidade.
— Não vai comer? — perguntou ela, apontando o lanche de Jorge.
Ele piscou, depois riu.
— Vou! — mas continuou fitando-a e, quase sem pensar, proferiu: — Seu rosto... Não!... Você, dos pés à cabeça — até o último fio de cabelo! É uma estrelinha que brilha no meio dessa cidade. Eu vejo São Paulo em você e vejo você em cada canto da nossa metrópole. Desde o primeiro momento, Marina. Desde o primeiro mísero instante. Antes era uma dúvida, agora estou convicto disso. Eu amo você, completamente.
Ela, em silêncio, mantinha os olhos arregalados e a boca entreaberta, as mãos apertando a metade do pão de queijo. Corava com veemência. Colocou o pão de queijo no balcão, segurando a mão direita de Jorge no segundo seguinte. E, quase como se brilhasse, ela... começou a chorar! As lágrimas de Marina eram raras e valiosas e, contudo, lá estavam elas. Aproximou-se mais dele, beijou-o na testa com uma expressão de dor profunda no rosto e sussurrou no ouvido do rapaz:
— Olhe para trás.
Devagar.
Surpreso, Jorge moveu a cabeça discretamente.
— O que, exatamente, quer que eu veja?
Marina curvou-se um pouco mais sobre ele — Jorge podia sentir o calor do corpo dela, enquanto os seios da garota, debaixo da blusa marrom, apertavam-se contra o seu peito.
— Um homem magro com uma bengala e uma mulher alta de cabelos coloridos. Estão bem ali, veja.
Ele se virou novamente com um pouco mais de sutileza, os olhos bem abertos, na espreita de visualizar algo totalmente bizarro; e viu-os, então: Jóhann e Isadora. A dupla olhava para todos os lados, exalando arrogância. Procuravam algo. Intimidando o mundo.
O dia perfeito para bombardearem tudo.
— Eles se desgastaram, Jorge. Mas vão me achar logo. Você está fora de qualquer influência, porém, é a peça que falta no tabuleiro. Você tem que fugir, agora. Não haverá uma segunda chance, mas tudo depende de como você agir.
Jorge ria, balbuciando, da situação. Estava mais em dúvida do que incrédulo, mas ria. Concentrou-se no rosto de Marina, bem diante do seu.
E então, ela correu. Em um bater de palmas, já havia se misturado com a multidão descolorida. Nenhum rastro da garota dos cabelos muito cacheados. Isadora e Jóhann pareciam ter evaporado também.
Isso foi um sonho?, indagava-se Jorge. Poderia ter sido; talvez fosse, mas não o dele. E um vento rasteiro, gelado e revelador golpeou-o, causando-lhe tremores irrefutáveis. Subitamente, uma brisa nasceu de lugar nenhum, ligeira, aparentemente sem direção. Eu poderia morrer em êxtase agora, suspirou ele. Imediatamente, foi até uma das filas para pegar um ônibus para casa. Lar, doce lar.
Mas, na extremidade esquerda de seu campo de visão, Jorge viu algo inusitado. Um vulto cinzento movia-se descontroladamente no meio de um número reduzido de pessoas distantes das filas avassaladoras. O vulto, então, se distanciou dali e, ainda em estado de desordem, vinha na direção de Jorge. Saltitou de um lado para o outro e depois parou. Agora estava defronte a Jorge. Via-se ali, em pé, uma mulher devastadoramente maravilhosa.
— Olá, Jorge — começou ela, engolindo-o com os elétricos olhos dourados — Me chamo Delphia. Já faz um tempo que ando te procurando. Você não faz idéia do quanto é importante para todos nós. Eu ficaria muito grata se você pudesse vir comigo... — sorriu encantadoramente, fechando os olhos, o que permitiu que Jorge se livrasse, por um instante, daquele estado de enlevo em que havia sido aprisionado — Por favor! Tenho muita coisa pra te contar, querido...
Uma cena brumosa e desfocada inundou a consciência de Jorge: a memória do rosto desorbital de Marina manifestava-se com severidade e palavras nunca antes ditas por ela ressonavam agora em sua cabeça:
Não acredite. Não confie. Duvide. Mas não deixe de viver.
Ainda com uma tendência à covardia, Jorge, no âmago de sua tenuidade, mergulhou nos olhos de Delphia. Era apaixonante, mas ele sabia como blindar-se.
Não. — murmurou.
Eis que o garoto simplesmente virou as costas e começou a andar. Delphia, estatualizada, ria mecanicamente, sem poder fazer nada: qualquer ocorrência desencadearia, de vez, uma guerra clara e mortal entre os Eve e os Delphia. A diretora da agência, ali parada, não desejava isso. Não ainda. Que continuassem, pelo menos por mais um período, nessa incoerente pseudo-Guerra Fria.
Uma chuva pesada começava a cair em São Paulo. Trovões escandalosos destruíam a calmaria. Jorge embarcou no ônibus que o levaria para casa, mas antes deu uma sagaz olhadela por cima do ombro: Delphia havia desaparecido. O garoto passou o bilhete único no identificador, atravessou a catraca e se sentou ao fundo — um homem surpreendentemente obeso fedendo a cerveja espremeu-se ao seu lado: Jorge adormeceu tão rápido que mal teve tempo de se sentir incomodado.
O dia 8 de Setembro de 2008 estava chegando ao fim. Um último vento remodelava a cidade: era contemplador, triunfante, e dançava harmoniosamente ao redor das cores intensas da noite.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Capítulo 16 - Delphia

— Antes de qualquer coisa — começava a dizer Leon, dentro do vestuário, a todos que ali estavam presentes —, temos que recapitular certos detalhes à respeito do que Amsterdã representa para nós. E, principalmente, os possíveis problemas que possam surgir.
Estavam todos sentados ao redor de uma mesa branca retangular, em silêncio absoluto — exceto pelas baforadas ruidosas que Isadora dava a cada final de tragada de seu cigarro. Leon ficou de pé, apoiou as mãos na mesa e com um meio-sorriso, olhou nos olhos de cada um deles.
Jóhann levantou a voz:
— Quando o senhor se refere a problemas... Isto estaria, de alguma forma, relacionado com...
— Sim! — interrompeu Leon com brutalidade.
— Mas então... O que pode ser feito?
Silêncio mais uma vez. Leon se sentou, cruzando os dedos atrás da cabeça.
— É um assunto delicado. — disse, fechando os olhos em seguida.
Isadora deu uma baforada violenta.
— Acredito — ela pôs-se a falar com desdém — que os seus assistentes aqui possam tomar conta disso. Não precisamos gastar energia à toa, pelo menos não por enquanto.
Ivan, em dúvida, exclamou:
— Ora! Eu não sabia que havia um limite de uso para a energia de vocês... Não são semideuses? Como pode dizer que a sua reserva de poder será gasta?
— É aí que você se engana pequeno Ivan. Além das nossas limitações, também possuímos esse “defeito”. Nós precisamos recarregar toda a energia que usamos.
— Pois então prove! — gritou ele, uma risada maldosa estava prestes a saltar para fora de sua boca.
Apagando o cigarro num cinzeiro próximo, Isadora apenas murmurou:
— Tudo em seu tempo, Ivan. Tudo em seu tempo.
Ele balançou a cabeça e bufou, revoltado. Olhou para Leon — o diretor pôs-se a falar brandamente.
— Relaxe, Ivan. A Entidade é uma existência quase inofensiva agora. Já se foi o tempo em que ela podia nos causar dores de cabeça. Você e os outros poderão lidar com ela de mãos atadas caso algo chegue perto de acontecer. Isadora, Jóhann e eu somos os únicos que poderão agir na hipótese das coisas saírem fora do controle. O ideal é que economizemos energia, de fato.
O assistente olhou para os lados, riu e perguntou.
— Sair do controle? Do que está falando?
Leon suspirou, dessa vez muito profundamente.
— Bom — começou ele, com uma pausa — a verdade é que... Há uma agência aqui em Amsterdã. Uma agência que conhecemos muito bem. São demônios, Ivan. Demônios. Prontos pra perturbarem os nossos planos, os planos da Agência Eve.
Ivan deduziu algo rapidamente.
— Você não estaria falando dos Delphia... Estaria?
— Na mosca! — soltou Leon, dando uma piscadela para Ivan e sorrindo melancolicamente.
O terceiro silêncio dominou a sala. Jóhann se levantou com velocidade mas delicadeza, foi até o canto superior esquerdo da sala e derramou um pouco de café quente da garrafa térmica numa pequena xícara. Deu uma mísera golada e voltou para a mesa trazendo a xícara consigo.
— Está um pouco forte, mas muito bom. Se eu fosse vocês, tomaria um pouco.
— Boa idéia — comentou Isadora, levantando-se e realizando exatamente o mesmo procedimento — Está realmente ótimo!
O diretor voltou a falar com uma sutil lentidão na voz:
— O que realmente deve ser prioridade agora — passou a mão pelos cabelos — é encontrarmos o paradeiro exato de Sara. E temos que encontrá-lo logo. Tanto eu, quanto Isadora e Jóhann, somos dotados de uma pseudo-onisciência, isso não é novidade. Só há uma maneira de obtermos o êxito existencial e, bom... Por ora, basta dizer que encontrar Sara é o primeiro passo. Sem isso, nada irá se desenvolver de maneira satisfatória. Preciso que fixem isso na mente de vocês, Ivan, Lafaiete e Julian. Tudo só irá ocorrer de maneira harmoniosa se vocês colaborarem com tudo o que puderem. É pra isso que estão aqui. Vocês sabem disso. Não há volta. Não há desistência. Não há dúvida. Vocês apenas obedecerão. Essa sempre foi e continuará sendo a função de vocês. Questionar-me é irrevogável — ele voltou para pegar mais café, e continuou falando —, por isso, é bom que saibam exatamente o que pensam — tomou um gole, dando uma pequena soprada —. Agora, vão. Encontrem Henry e os jovens. O passeio deles terminou.
Mas, de súbito, um guincho ensurdecedor invadiu a sala. Era Isadora, com as mãos apertando a cabeça, as pupilas haviam sumido, e aquele som devastador jorrava desesperadamente de sua boca. Leon olhou, surpreso, fazendo um sinal para Jóhann, que imediatamente segurou as mãos de Isadora com extrema força, abaixando-as e começou a sussurrar algo inaudível no ouvido dela. Aos poucos o grito foi se acalmando, até se extinguir por completo. Isadora voltou ao normal, as pupilas haviam retornado, mas uma encarnação do pânico ainda permanecia dominante em seu rosto.
— Isa — perguntou Jóhann, ligeiramente alarmado — O que foi?
Ela olhou nos olhos dele com profundidade e assombro.
— Problemas.




Andando desordenadamente por Amsterdã, Luiz, Cecília e Marina cantarolavam músicas bregas com uma felicidade fora do comum — pareciam já estarem bêbados antes mesmo de beberem qualquer coisa. Quando pararam em frente a uma lanchonete barulhenta, ouviram uma voz recente e conhecida os chamando.
— Jovenzinhos!
Olharam para trás: era Henry. Sua feição era de total desprazer.
— Henry? — disse Luiz, quando o assistente se aproximou — O que foi? O Red Light District estava tão desagradável assim?
— É — suspirou ele, o suor escorrendo no rosto — Digamos que fui interrompido no melhor momento. Mas, isso não importa agora. O nosso passeio foi cancelado. Temos que voltar.
— O que aconteceu? — perguntou Marina, colocando as mãos na cintura e olhando para Henry intimidadoramente.
— Você vai precisar ser forte, garotinha — e pousou a mão com carinho na cabeça dela.
Marina, mesmo sem saber exatamente o que havia acontecido, começou a chorar intensamente, caindo de joelhos na calçada. Luiz abaixou-se, abraçando-a e tentando fazê-la se levantar. Fitou Henry com fúria.
— O que houve? Droga! Por que ela está chorando?
Henry colocou a mão direita no bolso, virou as costas e acenando com o outro braço, falou:
— Venham, me sigam. Eu conto no caminho.
Os três caminharam inquietos, a intuição de cada um dizia que algo realmente preocupante havia acontecido. De repente, o ar ficou ardidamente frio. Cecília agarrou o braço esquerdo de Luiz, enquanto o direito estava ao redor do pescoço de Marina. Tensão e medo começavam a tomar conta dos jovens de uma maneira totalmente indesejável.





Sussurros, sussurros, escuridão: o mundo era feito disso. Nenhuma luz. Nada. As memórias misturavam-se. Os sentidos iam trocando de lugar. Não havia qualquer coisa que pudesse fazer sentido.
Mas, subitamente, ele ouviu uma declaração de amor. Era ela, Manuela.
Um mundo vermelho, vermelho-sangue, surgiu. Um barulho ruidoso, explosivo, distorcido e a mesma voz etérea de antes começava a falar novamente. Não há amor, dizia. E a escuridão voltara.
Porém, Dante, no coração do mundo, gritava com as forças mais potentes de sua alma, gritava contra tudo, contra os deuses, como uma fera, e gritava uma só coisa: Manuela!
Ela respondia com uma voz fraca, mais uma vez declarando seu amor. E o mundo vermelho retornava. As coisas triviais começavam a voltar. O mundo pesado e real vinha juntando-se às consciências dos dois. A voz etérea parecia se desesperar, gritando repetitivamente: O amor não existe, não deve, não pode, não é isso! Mas era tarde demais. Um flash levemente ofuscante foi a primeira coisa que Dante e Manuela viram quando voltaram ao mundo real.
E lá estavam eles: era um quarto azul-claro, muito espaçoso, com duas dúzias de camas, sendo que apenas uma era de casal — Dante e Manuela acordaram deitados nela. Olharam-se, perdidos, sem ver nada além deles mesmos, mas em seguida se abraçaram em euforia, um chamando o nome do outro como se não se vissem há anos, mesmo sem saber absolutamente nada do que havia acontecido. Beijaram-se inúmeras vezes.
— O que... O que... — Dante gaguejava, sem conseguir raciocinar com eficácia.
Manuela colocou o dedo indicador nos lábios dele, pedindo que ficasse calmo. Beijou-o na testa, acariciando-lhe os cabelos.
— Nós estamos bem. E juntos. Isso é o que importa. — sussurrou ela, roçando os lábios no ouvido de Dante.
Dante fechou os olhos, arrepiando-se, e entregou-se à sedução da garota ruiva. Inclinou-se, tocando com os lábios o misterioso e suave pescoço de Manuela — o pescoço era a divisão suprema entre mente e corpo, onde tudo entrava em dilema, mas talvez Manuela soubesse lidar perfeitamente com ambos.
De supetão, Dante e Manuela assustaram-se — alguém batia palmas em algum lugar bem próximo dali. Uma voz rouca e feminina irrompeu o ar.
— Vocês são seres belíssimos, que coisa linda... Como podem achar que se amam tanto? Onde está a prova? Preocupam-se mais em ficarem se osculando do que em saber aonde vieram parar. Que tolice. Como eu disse antes, o amor não existe, e é uma pena vocês não estarem a par disto.
Os dois viraram a cabeça em todas as direções, procurando o dono da voz, mas não encontravam nada.
— Quem é? O que quer de nós? — Dante berrava frases previsíveis.
O som de passos se aproximava. Uma porta à direita, antes não vista por eles, agora se abria. Uma mão bastante branca segurava a maçaneta, seguida de uma figura espetacular. Era uma mulher angelical, a pele muito clara, os cabelos esvoaçantes prateados, as vestes cinzentas e flutuantes; ela própria também flutuava. Era uma deusa, um anjo. Os dois jovens paralisaram-se com a beleza irreal daquele ser.
— Olá, meus queridos — disse ela, a voz rouca agora estava adocicada e, mais uma vez, etérea — Vocês terão muita coisa para aprender aqui. É normal vocês se sentirem atraídos um pelo outro. Mas não há tanto amor quanto parece. Não compreendem agora, eu sei. É o calor humano, a síntese humana, essa mistura química, mistura de pensamentos. Deram a essa tolice o nome de amor. O amor não é isso. O verdadeiro amor... Bom, isso vocês irão aprender comigo. — e deu uma risadinha élfica.
Os dois jovens a seguiam com olhos assustados. Ela se aproximava sem tocar o chão com os pés. Era hipnotizante. Sentou-se meigamente na beira da cama em que Dante e Manuela estavam. Fitou-os: os olhos dourados queimavam de tão ofuscantes, de tão belos.
Manuela tomou coragem e perguntou subitamente:
— Quem... Quem é você?
Ela sorriu pomposamente, mas era algo que causava uma incompreensível sensação de enlevo.
— Eu tenho vários nomes, minha pequena Manuela. Mas o meu nome mais popular, que por sua vez representa todo o âmago da minha individualidade consciente é... Delphia.

sábado, 31 de janeiro de 2009

Capítulo 15 - Amor

O nariz de Manuela coçou levemente quando o avião aterrissava numa extensa superfície plana. O cheiro do ar era outro. Depois de Leon, Isadora, Jóhann e dois dos quatro agentes, Manuela foi a primeira dos jovens a desembarcar; e o que viu, do lado de fora, se não era assustador, pelo menos causava alguma inquietação: era um estádio de futebol - o Amsterdam ArenA. Perfeito, único.
— Vocês sabem que horas são? — indagou Leon, após todos se encontrarem do lado de fora do pequeno avião.
Ninguém respondeu.
— São onze da manhã, do dia 16 de Agosto. Talvez alguns se surpreendam com a inimaginável aterrissagem dentro deste belíssimo estádio, mas creio que já conheçam as nossas capacidades sobrehumanas o suficiente para que eu me sinta confortável para poder me privar de quaisquer explicações. — deu um sorriso torto, virou-se — Sigam-me. — disse, por fim.
Foi caminhando vivazmente na direção de um dos vestuários, os outros o seguiam. O sol estava relaxante no seu calor, refrescante, batendo na testa de Manuela. Mas, de repente, ela rapou.
— Dante! — chamou ela.
O rapaz se virou imediatamente, olhando com profundidade nos olhos azuis da garota, a feição confusa mas séria.
— Que foi? — perguntou.
— Olhe — ela apontou para uma direção indefinida, para o alto, talvez para o céu.
— O que está vendo? — perguntou o garoto, curioso.
— O céu. Você se lembra?
Ele levantou a cabeça mais uma vez, deixando-se observar longamente o céu azul-claro com poucas nuvens — eram poucas mas havia um punhado encobrindo parte da luz solar... Um punhado de nuvens cinzentas, carregadas. Só aquele punhado.
— Como eu conseguiria esquecer, Manuela? Como eu poderia?
E encarou-a com um sorriso bondoso na face. Ela retribuiu o sorriso, dizendo:
— Você... é especial pra mim, Dante. Mais do que eu poderia imaginar. Me desculpe por aquele dia. Talvez você seja a única pessoa que realmente me compreende. Acho que eu estava errada.
Dante segurou as mãos dela com certa firmeza, dessa vez com um olhar sério e intimidador.
— Manuela, você entende, não é mesmo? Desde aquele dia, o dia em que o céu estava assim, o dia em que nos conhecemos... Você sempre foi a coisa mais importante pra mim. Mais do que tudo. Tudo, Manuela.
Seus rostos ficaram muito próximos. As respirações misturavam-se. Nervosismo, corações disparando. Sorrisos e olhares de encanto. Ali, no meio do Amsterdam ArenA, na frente de todos, os lábios deles se tocaram gentilmente, depois se separaram e voltaram a se tocar uma última vez.
— Eu te amo. — disse Dante, dessa vez com uma expressão rara de extrema felicidade.
— Eu também. Sempre. — sussurrou Manuela, com ternura.
E, dessa vez de mãos dadas, correram para acompanharem os outros que seguiam Leon.
Cecília estava próxima e vira a cena; seu coração doía: inevitavelmente, o que sentia pela amiga era algo maior do que uma simples atração física. Havia o sentimento do amor relacionado à amizade em si, claro, mas existia algo mais. Um outro amor, diferente.
— Eu ainda vou... lutar por ela! — pensou, quase falando.
Leon se aproximava da entrada de um dos vestuários, o grupo o seguia com interesse. Ele abriu a porta dupla e ficou para na frente da mesma, virando-se para os outros.
— Isadora, Jóhann, Ivan, Lafaiete e Julian, vocês entrarão comigo. Henry, você pode ir com os jovens, mostre-os um pouco do que é Amsterdã. Mas tomem cuidado, acima de tudo.
Sorriu como um velho enrugado e, de alguma forma, ele era exatamente isso.
— Ok, senhor Leon. — respondeu Henry com convicção.
Henry era um assistente bastante útil. Velocidade e destreza eram as características que mais o favoreciam e acabavam contribuindo para a sua ascensão na Agência Eve. Sua aparência, no entanto, era consideravelmente duvidosa: o rosto espinhento, os longos cabelos ondulados, amarrados em um rabo de cavalo, e o corpo jovem e musculoso o faziam aparentar, no máximo, uns 25 anos de idade, mas era impossível ter certeza, afinal, ele também não deveria ser um ser humano comum, apesar de também não chegar nem perto de ser nenhum deus — não que Isadora, Jóhann e Leon fossem isso em suas essências.
Depois que os "convocados" de Leon adentraram no vestuário, Henry se virou para os jovens com um largo e forçado sorriso no rosto.
— É... parece que eu vou ser a babá de vocês hoje.
Ninguém riu. Os cinco o seguiram até o saída do estádio Amsterdam ArenA.
Do lado de fora, havia outro mundo. Amsterdã, uma cidade aquática, a Veneza do Norte, como diziam. As construções eram de cores diversas, nada fora do comum, mas o cheio da água era captável em qualquer ponto dali. A aparência era inovadora, mas... as pessoas e as sensações eram literalmente variadas.
— Então — começou Henry — Pra onde vão querer ir primeiro?
Dante fez uma cara irônica e disse:
— Ué... eu pensei que você fosse o nosso guia. Talvez você não tenha percebido ainda, mas nunca viemos aqui antes. Comecemos por onde você achar melhor.
O assistente coçou a cabeça com a mão esquerda, encarando Dante friamente. Depois sorriu, quase imperceptivelmente.
— Você está certo, rapazinho. Eu sou meio desatento mesmo! — riu de si mesmo, com muito mais tranquilidade agora — Vamos à um coffee shop então. Isso é o que não falta por aqui.
Mas não ia ser exatamente isso o que ia acontecer.
— Espere — falou Luiz, para a surpresa de todos — Eu tive uma idéia.
Todos fitaram o garoto cabeludo, atônitos.
— E o que você sugere, Luizinho? — perguntou Henry, com sarcasmo.
Luiz sorriu mais sarcasticamente ainda, e falou:
— Eu acredito sinceramente que... a maioria de nós quer fazer um tour pela cidade por conta própria. Você não precisa ser nossa babá, ninguém aqui é uma criancinha. Que tal cada um ir para onde quiser, e nos encontramos aqui mesmo, daqui a uma hora?
— Eu concordo! — exclamou Marina, entusiasmada.
— Eu também! — dessa vez foi Cecília quem assentiu.
Henry olhou para Dante e Manuela pelo canto do olho.
— Vocês? — perguntou ele.
Os dois balançaram a cabeça positivamente.
Com um fechar de olhos e um suspiro que significava indiferença, Henry parecia ter admitido a desejada derrota.
— Bom, então, que seja. Para mim não mudará muita coisa. Tomem, virem-se com esses duzentos euros. Eu queria dar uma passada pelo Red Light District mesmo, e é bem melhor ir sem vocês — riu para si — Só tenham certeza de decorarem o caminho de volta. É fácil se perder em qualquer lugar do mundo que nos é desconhecido. Até.
E saiu andando velozmente, com passos de alívio, por ter se livrado da responsabilidade de ter que tomar conta dos jovens, mesmo que tivesse sido um pedido de Leon. "Ele não vai se importar", pensou Henry.
Ainda parados em frente ao ArenA, os cinco se entreolhavam com inquietação.
Luiz quebrou os olhares:
— Acho que vou comer alguma coisa. Estou faminto. Quem topa?
Marina foi a primeira, seguida pelos outros três — mas, de imediato, Luiz pôs a mão direita no ombro de Dante e disse baixinho, de modo que só ele pudesse ouvir:
— Eu levo Cecília e Marina para poder deixar você e a Manuela mais à vontade. Vá em frente. Tenha uma boa conversa com ela. Termine de pegar de volta aquilo que sempre foi seu.
Dante quase riu da sutileza machista da última frase, mas concordou com a idéia.
— Obrigado. — falou.
Um instante depois, Luiz agarrou Marina e Cecília pelas cinturas e levou-as consigo.
— Vamos, vamos garotas! As cores da Veneza do Norte nos esperam! Vamos vagar por aí...!
— Espere... e os dois? — questionou Cecília, confusa e enciumada.
— Eles precisam desse tempo. Sozinhos.
Cecília, sentindo um aperto devastador no peito, olhava, ainda a uma certa distância, Dante e Manuela, parados como duas estátuas, os olhos dele nos dela: amavam-se em silêncio. E não havia nada que Cecília pudesse fazer. Eles se mereciam, se completavam; isso era inegável.
— Está com fome? — perguntou Dante à garota dos cabelos vermelhos.
— Sim. Muita. — disse ela, sorrindo perspicazmente.
Seguiram, então, na direção oposta da que Luiz e as garotas haviam tomado. Pararam na frente de um restaurante aparentemente não tão simples, mas também não tão espalhafatoso.
— Este parece um bom lugar. — comentou Dante, alegre.
Entraram — Manuela fez questão de escolher uma das mesas mais afastadas. Um garçom logo veio atendê-los — entregou dois cardápios sem dizer palavra alguma.
— O que vai querer? — interrogou Dante, a cabeça inclinada na direção do cardápio, mas com os olhos grudados em Manuela.
— Eu pensei em alguma coisa mais caseira e suculenta. Mas aqui tem muita coisa! — exclamou ela, colocando as duas mãos na cabeça e rindo — Não consigo escolher!
Dante acenou com a mão, chamando o garçom.
O homem, vendo que Manuela e Dante eram estrangeiros, pôs-se a falar em inglês.
— What can I do for you?
Dante tinha um inglês razoável, então, disse:
— Can you... bring me two sandwiches and two cokes, please?
— Of course. What you want in the sandwich?
— Well... I don't know, just bring me what you think was the best sandwich. Ok?
— Fine. I will.
O homem se virou, indo providenciar o pedido.
Manuela encarou Dante com olhos penetrantes.
— Seu inglês não é dos piores. — disse ela, ironicamente.
— Obrigado. Eu não fiz nenhum curso, nem nada... Acho que está razoável.
— De fato.
Trocaram sorrisos bobos e desviaram o olhar. O silêncio perdurou por um tempo, como se um estivesse tentando ler os pensamentos do outro. Quando olharam-se de volta, já pareciam ter tirado suas conclusões com relação ao que iriam dizer a seguir.
— Manuela, eu... — começou Dante, praticamente sussurando; sua boca tremia. Segurou as mãos de Manuela, acariciando-as.
Ela olhou pra ele, em dúvida, a interrogação formada na face.
— Estou ouvindo. — disse ela, ligeiramente apreensiva.
Dante suspirou profundamente e começou a discorrer:
— Naquele dia, Manu... no dia em que nós dois brigamos no ônibus. Uma coisa aconteceu, logo depois de você descer.
E fez mais uma pausa. Olhou para ela com olhos tristes.
— O que aconteceu, Dante? Pode me contar. Você confia em mim ou não?
— Eu penso que sim... afinal, você é a pessoa mais importante do mundo pra mim.
— Você tem o mesmo significado pra mim, Dante. Não importa o que seja, você não tem porquê me esconder algo.
Do lado de fora, uma garoa mansa caía, muda, sobre a cidade. Era um dia sombrio, mas... romântico, sensual, nostálgico. Havia uma beleza visceral dominando Amsterdã.
— A minha comodidade me impedia de falar, Manu. Um segundo depois de você descer do ônibus, meu pai apareceu. Apertou meu ombro, dizendo que queria conversar.
A garota arregalou os olhos, claramente surpresa.
— Seu pai? E o que vocês conversaram?
— Ele queria que eu ajudasse a inocentá-lo. Inocentá-lo pela morte da minha mãe, Manu! — de repente, via-se a fúria em seu rosto — Aquele desgraçado! Eu... eu... ele tentou me matar e...
— E o quê?
— Eu o matei.
Quando Dante terminou de proferir aquelas palavras, o garçom havia chegado à mesa, servindo os dois refrigerantes.
Here. The cokes. I'll come back to get the sandwiches.
— Ok. Thanks. — murmurou Dante, cabisbaixo, dando uma longa golada na coca.
Manuela coçou o nariz perfeito com a mão esquerda. Seus olhos, agora mergulhados em alguma dimensão profunda, mostravam que ela raciocinava intensamente sobre algo. Ao coçar o nariz novamente, dessa vez com a mão direita, disse:
— Isso faz de você um assassino, Dante.
Ele concordou com a cabeça, razoavelmente surpreso pelas palavras dela, soltando um leve suspiro, sem olhar para a garota.
— Mas — continuou ela —, mesmo que você não vá para o Céu — deu uma risadinha impura —, você teve um motivo considerável para fazer o que fez. Matar alguém não é uma coisa boa, mas... tem horas que não existe outra saída — isto é, a não ser que você quisesse ser morto por ele. Você lutou pela sua vida, Dante. Eu respeito isso, e admiro. O que eu sinto por você agora chegou a um ponto em que... é bastante difícil, se não impossível, de sofrer modificações, por qualquer motivo que seja.
Ela levantou a cabeça dele: lágrimas inundavam-lhe o rosto.
— Obrigado — disse ele, as lágrimas despencando mais ainda.
Erguendo-se sutilmente da cadeira, Manuela beijou os lábios de Dante com extrema doçura.
Mas, então, algo ocorreu. De repente um mundo escuro surgiu, e Dante e Manuela não puderam reconhecer mais nada, salvo uma voz etérea que, ao fundo, sussurrava: O amor... não existe.