sábado, 7 de fevereiro de 2009

Capítulo 16 - Delphia

— Antes de qualquer coisa — começava a dizer Leon, dentro do vestuário, a todos que ali estavam presentes —, temos que recapitular certos detalhes à respeito do que Amsterdã representa para nós. E, principalmente, os possíveis problemas que possam surgir.
Estavam todos sentados ao redor de uma mesa branca retangular, em silêncio absoluto — exceto pelas baforadas ruidosas que Isadora dava a cada final de tragada de seu cigarro. Leon ficou de pé, apoiou as mãos na mesa e com um meio-sorriso, olhou nos olhos de cada um deles.
Jóhann levantou a voz:
— Quando o senhor se refere a problemas... Isto estaria, de alguma forma, relacionado com...
— Sim! — interrompeu Leon com brutalidade.
— Mas então... O que pode ser feito?
Silêncio mais uma vez. Leon se sentou, cruzando os dedos atrás da cabeça.
— É um assunto delicado. — disse, fechando os olhos em seguida.
Isadora deu uma baforada violenta.
— Acredito — ela pôs-se a falar com desdém — que os seus assistentes aqui possam tomar conta disso. Não precisamos gastar energia à toa, pelo menos não por enquanto.
Ivan, em dúvida, exclamou:
— Ora! Eu não sabia que havia um limite de uso para a energia de vocês... Não são semideuses? Como pode dizer que a sua reserva de poder será gasta?
— É aí que você se engana pequeno Ivan. Além das nossas limitações, também possuímos esse “defeito”. Nós precisamos recarregar toda a energia que usamos.
— Pois então prove! — gritou ele, uma risada maldosa estava prestes a saltar para fora de sua boca.
Apagando o cigarro num cinzeiro próximo, Isadora apenas murmurou:
— Tudo em seu tempo, Ivan. Tudo em seu tempo.
Ele balançou a cabeça e bufou, revoltado. Olhou para Leon — o diretor pôs-se a falar brandamente.
— Relaxe, Ivan. A Entidade é uma existência quase inofensiva agora. Já se foi o tempo em que ela podia nos causar dores de cabeça. Você e os outros poderão lidar com ela de mãos atadas caso algo chegue perto de acontecer. Isadora, Jóhann e eu somos os únicos que poderão agir na hipótese das coisas saírem fora do controle. O ideal é que economizemos energia, de fato.
O assistente olhou para os lados, riu e perguntou.
— Sair do controle? Do que está falando?
Leon suspirou, dessa vez muito profundamente.
— Bom — começou ele, com uma pausa — a verdade é que... Há uma agência aqui em Amsterdã. Uma agência que conhecemos muito bem. São demônios, Ivan. Demônios. Prontos pra perturbarem os nossos planos, os planos da Agência Eve.
Ivan deduziu algo rapidamente.
— Você não estaria falando dos Delphia... Estaria?
— Na mosca! — soltou Leon, dando uma piscadela para Ivan e sorrindo melancolicamente.
O terceiro silêncio dominou a sala. Jóhann se levantou com velocidade mas delicadeza, foi até o canto superior esquerdo da sala e derramou um pouco de café quente da garrafa térmica numa pequena xícara. Deu uma mísera golada e voltou para a mesa trazendo a xícara consigo.
— Está um pouco forte, mas muito bom. Se eu fosse vocês, tomaria um pouco.
— Boa idéia — comentou Isadora, levantando-se e realizando exatamente o mesmo procedimento — Está realmente ótimo!
O diretor voltou a falar com uma sutil lentidão na voz:
— O que realmente deve ser prioridade agora — passou a mão pelos cabelos — é encontrarmos o paradeiro exato de Sara. E temos que encontrá-lo logo. Tanto eu, quanto Isadora e Jóhann, somos dotados de uma pseudo-onisciência, isso não é novidade. Só há uma maneira de obtermos o êxito existencial e, bom... Por ora, basta dizer que encontrar Sara é o primeiro passo. Sem isso, nada irá se desenvolver de maneira satisfatória. Preciso que fixem isso na mente de vocês, Ivan, Lafaiete e Julian. Tudo só irá ocorrer de maneira harmoniosa se vocês colaborarem com tudo o que puderem. É pra isso que estão aqui. Vocês sabem disso. Não há volta. Não há desistência. Não há dúvida. Vocês apenas obedecerão. Essa sempre foi e continuará sendo a função de vocês. Questionar-me é irrevogável — ele voltou para pegar mais café, e continuou falando —, por isso, é bom que saibam exatamente o que pensam — tomou um gole, dando uma pequena soprada —. Agora, vão. Encontrem Henry e os jovens. O passeio deles terminou.
Mas, de súbito, um guincho ensurdecedor invadiu a sala. Era Isadora, com as mãos apertando a cabeça, as pupilas haviam sumido, e aquele som devastador jorrava desesperadamente de sua boca. Leon olhou, surpreso, fazendo um sinal para Jóhann, que imediatamente segurou as mãos de Isadora com extrema força, abaixando-as e começou a sussurrar algo inaudível no ouvido dela. Aos poucos o grito foi se acalmando, até se extinguir por completo. Isadora voltou ao normal, as pupilas haviam retornado, mas uma encarnação do pânico ainda permanecia dominante em seu rosto.
— Isa — perguntou Jóhann, ligeiramente alarmado — O que foi?
Ela olhou nos olhos dele com profundidade e assombro.
— Problemas.




Andando desordenadamente por Amsterdã, Luiz, Cecília e Marina cantarolavam músicas bregas com uma felicidade fora do comum — pareciam já estarem bêbados antes mesmo de beberem qualquer coisa. Quando pararam em frente a uma lanchonete barulhenta, ouviram uma voz recente e conhecida os chamando.
— Jovenzinhos!
Olharam para trás: era Henry. Sua feição era de total desprazer.
— Henry? — disse Luiz, quando o assistente se aproximou — O que foi? O Red Light District estava tão desagradável assim?
— É — suspirou ele, o suor escorrendo no rosto — Digamos que fui interrompido no melhor momento. Mas, isso não importa agora. O nosso passeio foi cancelado. Temos que voltar.
— O que aconteceu? — perguntou Marina, colocando as mãos na cintura e olhando para Henry intimidadoramente.
— Você vai precisar ser forte, garotinha — e pousou a mão com carinho na cabeça dela.
Marina, mesmo sem saber exatamente o que havia acontecido, começou a chorar intensamente, caindo de joelhos na calçada. Luiz abaixou-se, abraçando-a e tentando fazê-la se levantar. Fitou Henry com fúria.
— O que houve? Droga! Por que ela está chorando?
Henry colocou a mão direita no bolso, virou as costas e acenando com o outro braço, falou:
— Venham, me sigam. Eu conto no caminho.
Os três caminharam inquietos, a intuição de cada um dizia que algo realmente preocupante havia acontecido. De repente, o ar ficou ardidamente frio. Cecília agarrou o braço esquerdo de Luiz, enquanto o direito estava ao redor do pescoço de Marina. Tensão e medo começavam a tomar conta dos jovens de uma maneira totalmente indesejável.





Sussurros, sussurros, escuridão: o mundo era feito disso. Nenhuma luz. Nada. As memórias misturavam-se. Os sentidos iam trocando de lugar. Não havia qualquer coisa que pudesse fazer sentido.
Mas, subitamente, ele ouviu uma declaração de amor. Era ela, Manuela.
Um mundo vermelho, vermelho-sangue, surgiu. Um barulho ruidoso, explosivo, distorcido e a mesma voz etérea de antes começava a falar novamente. Não há amor, dizia. E a escuridão voltara.
Porém, Dante, no coração do mundo, gritava com as forças mais potentes de sua alma, gritava contra tudo, contra os deuses, como uma fera, e gritava uma só coisa: Manuela!
Ela respondia com uma voz fraca, mais uma vez declarando seu amor. E o mundo vermelho retornava. As coisas triviais começavam a voltar. O mundo pesado e real vinha juntando-se às consciências dos dois. A voz etérea parecia se desesperar, gritando repetitivamente: O amor não existe, não deve, não pode, não é isso! Mas era tarde demais. Um flash levemente ofuscante foi a primeira coisa que Dante e Manuela viram quando voltaram ao mundo real.
E lá estavam eles: era um quarto azul-claro, muito espaçoso, com duas dúzias de camas, sendo que apenas uma era de casal — Dante e Manuela acordaram deitados nela. Olharam-se, perdidos, sem ver nada além deles mesmos, mas em seguida se abraçaram em euforia, um chamando o nome do outro como se não se vissem há anos, mesmo sem saber absolutamente nada do que havia acontecido. Beijaram-se inúmeras vezes.
— O que... O que... — Dante gaguejava, sem conseguir raciocinar com eficácia.
Manuela colocou o dedo indicador nos lábios dele, pedindo que ficasse calmo. Beijou-o na testa, acariciando-lhe os cabelos.
— Nós estamos bem. E juntos. Isso é o que importa. — sussurrou ela, roçando os lábios no ouvido de Dante.
Dante fechou os olhos, arrepiando-se, e entregou-se à sedução da garota ruiva. Inclinou-se, tocando com os lábios o misterioso e suave pescoço de Manuela — o pescoço era a divisão suprema entre mente e corpo, onde tudo entrava em dilema, mas talvez Manuela soubesse lidar perfeitamente com ambos.
De supetão, Dante e Manuela assustaram-se — alguém batia palmas em algum lugar bem próximo dali. Uma voz rouca e feminina irrompeu o ar.
— Vocês são seres belíssimos, que coisa linda... Como podem achar que se amam tanto? Onde está a prova? Preocupam-se mais em ficarem se osculando do que em saber aonde vieram parar. Que tolice. Como eu disse antes, o amor não existe, e é uma pena vocês não estarem a par disto.
Os dois viraram a cabeça em todas as direções, procurando o dono da voz, mas não encontravam nada.
— Quem é? O que quer de nós? — Dante berrava frases previsíveis.
O som de passos se aproximava. Uma porta à direita, antes não vista por eles, agora se abria. Uma mão bastante branca segurava a maçaneta, seguida de uma figura espetacular. Era uma mulher angelical, a pele muito clara, os cabelos esvoaçantes prateados, as vestes cinzentas e flutuantes; ela própria também flutuava. Era uma deusa, um anjo. Os dois jovens paralisaram-se com a beleza irreal daquele ser.
— Olá, meus queridos — disse ela, a voz rouca agora estava adocicada e, mais uma vez, etérea — Vocês terão muita coisa para aprender aqui. É normal vocês se sentirem atraídos um pelo outro. Mas não há tanto amor quanto parece. Não compreendem agora, eu sei. É o calor humano, a síntese humana, essa mistura química, mistura de pensamentos. Deram a essa tolice o nome de amor. O amor não é isso. O verdadeiro amor... Bom, isso vocês irão aprender comigo. — e deu uma risadinha élfica.
Os dois jovens a seguiam com olhos assustados. Ela se aproximava sem tocar o chão com os pés. Era hipnotizante. Sentou-se meigamente na beira da cama em que Dante e Manuela estavam. Fitou-os: os olhos dourados queimavam de tão ofuscantes, de tão belos.
Manuela tomou coragem e perguntou subitamente:
— Quem... Quem é você?
Ela sorriu pomposamente, mas era algo que causava uma incompreensível sensação de enlevo.
— Eu tenho vários nomes, minha pequena Manuela. Mas o meu nome mais popular, que por sua vez representa todo o âmago da minha individualidade consciente é... Delphia.