sábado, 14 de março de 2009

Capítulo 17 - Todos Os Ventos

O ônibus parou bruscamente no ponto graças à sinalização atrasada de Jorge. Ele e Marina subiram naquele monstro poluidor indiscutivelmente útil. Sentaram com calma em dois bancos vazios no fundo — o garoto ficou do lado da janela. Ele fitou a janela: as gotas bruxuleantes escorriam pelas vidraças do ônibus; o rapaz fechou os olhos, suspirando ruidosamente.
— Jorge — chamou Marina, ao lado dele — Você parece meio tenso. Tem algo te incomodando? — e inclinou a cabeça para olhá-lo nos olhos.
Ele virou-se para ela rapidamente, desviando o olhar em seguida, rindo e corando. Respirou fundo e encarou os próprios joelhos.
— Marina — ele exalava uma firmeza incomum na voz — Escuta...
Um punhado de vento entrou por alguma fresta. Jorge arrepiou-se, ao mesmo tempo em que um cheiro doce de leite quente da sua perspicaz infância invadia-lhe a alma. Marina também sentia algo parecido, mas numa proporção menor.
O mundo inteiro, sussurrou ele, mentalmente. E mergulhou naquela galáxia de emoções por um tempo idiotamente curto, mas que valia por toda a eternidade.
— Jorge?
E Jorge voltara. Os joelhos ali na frente de seus olhos, e Marina, ao seu lado, aguardando sua fala.
— Ah...! Não é nada! — e riu para si, de olhos fechados, com vergonha da própria covardia.
Mas, de súbito, ela pôs a mão sobre o braço dele — aquela mão tão delicada e ágil. E fria!
— Jorge, veja bem... — ela falava com uma graciosidade fora do comum — Eu não sei o que você tem, mas, consigo entender que talvez esteja passando por um momento conturbado — ela tirou a mão do braço de Jorge e, para o total assombro do rapaz, pôs entre os cabelos negros de Jorge — Por isso, relaxe. Seja o que for, vai passar.
Enquanto a Av. Brigadeiro Luís Antônio ficava para trás, ele olhou-a nos olhos, assustado, mas em deleite. Um sorriso angelical vindo dos lábios dela fez com que suas estruturas desmoronassem e Jorge desabou em lágrimas vertiginosas, ao passo que um segundo punhado de vento invadiu o interior do ônibus, dessa vez com certa quantidade de vapor gélido, enriquecido com aqueles aromas memoráveis daquelas esquinas que viramos uma única vez na vida.
— Esse vento — murmurou Jorge, ainda com o rosto ensopado de lágrimas — É o vento daquele dia... Posso ver tudo. Elas, ali. Sorrindo, retardadas. Minhas primas. Lindas, apesar de tudo, mas eu nunca morreria por nenhuma delas, essa é a verdade... Talvez a Ana, mas não, prefiro me recusar a admitir isso. Estou lá...
A garota dos cabelos muito cacheados, confusa, segurou o rosto de Jorge com a mão direita, dizendo num tom mais sério do que todas as outras vezes:
— Você não está bem, Jorge. Não mesmo. Não entendo o que diz, mas é melhor que você mantenha-se firme, aqui, no presente. Lembrar do passado pode ser muito bom, mas arrastar-se de volta para ele é um tanto arriscado. Fique aqui, comigo. Tudo bem?
— Minha mãe... Ela sabe de tudo isso, ela sente também. Eu não posso ficar aqui.
— Você precisa! Idiota! Você faz parte desse mundo, desse tempo! — e, puxando de leve os cabelos dele, empurrou-lhe a cabeça no vidro da janela, falando com um tom aridamente divertido: —
É tão difícil entender isso?
O garoto se assustou, voltando a si, envergonhando-se pesadamente. Esfregou as mãos no rosto, deu um suspiro esganiçado e voltou-se para Marina:
— Será que... seria muito difícil se nós dois tentássemos excluir isso da memória?
Marina sorriu, desviando o olhar, balançando as pernas como uma criança dócil.
— Eu já vi muita gente meio problemática — respondeu ela — Relaxe.
— Obrigado — agradeceu Jorge, fitando a janela mais uma vez.
Do lado de fora, prédios cinzentos e impiedosos. Prédios..., pensava Jorge,
A eternidade do mundo está nisso. Nisso e no vento.
O tempo passava. Escurecia em São Paulo, cidade das luzes, das multidões, do movimento, das misturas, das cores, das emoções, das injustiças, dos ventos.
A cidade de todos os ventos.
— O Terminal Princesa Isabel está próximo — comentou Marina, com ansiedade — Vou precisar comer algo urgentemente!
— Idem! — disse Jorge, em meio a um sorriso distorcido.
Marina parecia distraída, agora, ao estudar o rosto do garoto.
— Eu não sei por quê... — começou ela, de súbito, levando a mão ao queixo num gesto forçado de parecer engraçada.
— Hum?
— O seu olhar... me lembra alguém. Esse olhar introspectivo, mas esperto, chegando a ser violento até. São castanho-esverdeados, mas parecem vermelhos, lá no fundo. Você é muito parecido com a Manuela.
Jorge, involuntariamente indiferente, questionou:
— Manuela? Quem é?
— Era — corrigiu Marina — Não tenho notícias dela há um bom tempo. Mas os momentos que vivi perto da ruiva foram muito singulares. Um ser humano ímpar. Talvez o mais incrível que já conheci. Ela tinha uma brutal, apesar de artificial, cabeleira vermelha, maravilhosa, perfeita. Não era um vermelho-alaranjado, tampouco um vermelho-vinho. Era vermelho, vermelho de verdade! Eu não saberia dizer, apesar de tudo, se ela era realmente tão especial quanto parecia — suspirou pensativamente — Mas, de qualquer forma, ela era totalmente contagiante. Ah! Chegamos no Terminal, Jorge!
Lá fora, haviam pessoas enfileiradas esperando pelos ônibus, impacientes, cansadas; Jorge e Marina desceram juntamente com os outros passageiros. Já passavam das 19h — o ar era fresco e animador. Os dois caminharam, sem pressa, até o quiosque no centro do terminal: tudo cheirava àquelas mini-pizzas de sabor questionável, mas isso só acentuou mais ainda a fome de ambos. As luzes amareladas pareciam se entrelaçar com o resto da realidade, mesmo que tudo não passasse de uma fétida noite comum. Jorge tentou não parecer tão emocionado por estar perto de Marina por todo aquele intervalo de tempo.
— Um pão de queijo, por favor! — exclamou Marina para a atendente do quiosque.
— Outro pra mim, por favor! — disse Jorge, quase em seguida. Apoiou-se de leve e centralizou a face de Marina em sua visão. A atendente logo veio com os dois pedidos. Jorge fez questão de pagar ambos.
— O que foi? — perguntou Marina, ligeiramente constrangida.
— É que... Talvez não seja da minha conta, mas, eu me pergunto, onde você esteve durante todos esses dias em que faltou no curso?
Marina, com extrema velocidade, discorreu uma mentira, evitando qualquer coisa que pudesse estar relacionada com a viagem para Amsterdã.
— Tive que fazer uma viagem de emergência. Alguns problemas graves na família. Sabe como é. — e terminou a frase com o clássico sorriso vivaz.
— Entendo — suspirou Jorge, não convencido. Continuou olhando-a, ainda sem dar nenhuma mordida no pão de queijo, enquanto ela comia o dela com voracidade.
— Não vai comer? — perguntou ela, apontando o lanche de Jorge.
Ele piscou, depois riu.
— Vou! — mas continuou fitando-a e, quase sem pensar, proferiu: — Seu rosto... Não!... Você, dos pés à cabeça — até o último fio de cabelo! É uma estrelinha que brilha no meio dessa cidade. Eu vejo São Paulo em você e vejo você em cada canto da nossa metrópole. Desde o primeiro momento, Marina. Desde o primeiro mísero instante. Antes era uma dúvida, agora estou convicto disso. Eu amo você, completamente.
Ela, em silêncio, mantinha os olhos arregalados e a boca entreaberta, as mãos apertando a metade do pão de queijo. Corava com veemência. Colocou o pão de queijo no balcão, segurando a mão direita de Jorge no segundo seguinte. E, quase como se brilhasse, ela... começou a chorar! As lágrimas de Marina eram raras e valiosas e, contudo, lá estavam elas. Aproximou-se mais dele, beijou-o na testa com uma expressão de dor profunda no rosto e sussurrou no ouvido do rapaz:
— Olhe para trás.
Devagar.
Surpreso, Jorge moveu a cabeça discretamente.
— O que, exatamente, quer que eu veja?
Marina curvou-se um pouco mais sobre ele — Jorge podia sentir o calor do corpo dela, enquanto os seios da garota, debaixo da blusa marrom, apertavam-se contra o seu peito.
— Um homem magro com uma bengala e uma mulher alta de cabelos coloridos. Estão bem ali, veja.
Ele se virou novamente com um pouco mais de sutileza, os olhos bem abertos, na espreita de visualizar algo totalmente bizarro; e viu-os, então: Jóhann e Isadora. A dupla olhava para todos os lados, exalando arrogância. Procuravam algo. Intimidando o mundo.
O dia perfeito para bombardearem tudo.
— Eles se desgastaram, Jorge. Mas vão me achar logo. Você está fora de qualquer influência, porém, é a peça que falta no tabuleiro. Você tem que fugir, agora. Não haverá uma segunda chance, mas tudo depende de como você agir.
Jorge ria, balbuciando, da situação. Estava mais em dúvida do que incrédulo, mas ria. Concentrou-se no rosto de Marina, bem diante do seu.
E então, ela correu. Em um bater de palmas, já havia se misturado com a multidão descolorida. Nenhum rastro da garota dos cabelos muito cacheados. Isadora e Jóhann pareciam ter evaporado também.
Isso foi um sonho?, indagava-se Jorge. Poderia ter sido; talvez fosse, mas não o dele. E um vento rasteiro, gelado e revelador golpeou-o, causando-lhe tremores irrefutáveis. Subitamente, uma brisa nasceu de lugar nenhum, ligeira, aparentemente sem direção. Eu poderia morrer em êxtase agora, suspirou ele. Imediatamente, foi até uma das filas para pegar um ônibus para casa. Lar, doce lar.
Mas, na extremidade esquerda de seu campo de visão, Jorge viu algo inusitado. Um vulto cinzento movia-se descontroladamente no meio de um número reduzido de pessoas distantes das filas avassaladoras. O vulto, então, se distanciou dali e, ainda em estado de desordem, vinha na direção de Jorge. Saltitou de um lado para o outro e depois parou. Agora estava defronte a Jorge. Via-se ali, em pé, uma mulher devastadoramente maravilhosa.
— Olá, Jorge — começou ela, engolindo-o com os elétricos olhos dourados — Me chamo Delphia. Já faz um tempo que ando te procurando. Você não faz idéia do quanto é importante para todos nós. Eu ficaria muito grata se você pudesse vir comigo... — sorriu encantadoramente, fechando os olhos, o que permitiu que Jorge se livrasse, por um instante, daquele estado de enlevo em que havia sido aprisionado — Por favor! Tenho muita coisa pra te contar, querido...
Uma cena brumosa e desfocada inundou a consciência de Jorge: a memória do rosto desorbital de Marina manifestava-se com severidade e palavras nunca antes ditas por ela ressonavam agora em sua cabeça:
Não acredite. Não confie. Duvide. Mas não deixe de viver.
Ainda com uma tendência à covardia, Jorge, no âmago de sua tenuidade, mergulhou nos olhos de Delphia. Era apaixonante, mas ele sabia como blindar-se.
Não. — murmurou.
Eis que o garoto simplesmente virou as costas e começou a andar. Delphia, estatualizada, ria mecanicamente, sem poder fazer nada: qualquer ocorrência desencadearia, de vez, uma guerra clara e mortal entre os Eve e os Delphia. A diretora da agência, ali parada, não desejava isso. Não ainda. Que continuassem, pelo menos por mais um período, nessa incoerente pseudo-Guerra Fria.
Uma chuva pesada começava a cair em São Paulo. Trovões escandalosos destruíam a calmaria. Jorge embarcou no ônibus que o levaria para casa, mas antes deu uma sagaz olhadela por cima do ombro: Delphia havia desaparecido. O garoto passou o bilhete único no identificador, atravessou a catraca e se sentou ao fundo — um homem surpreendentemente obeso fedendo a cerveja espremeu-se ao seu lado: Jorge adormeceu tão rápido que mal teve tempo de se sentir incomodado.
O dia 8 de Setembro de 2008 estava chegando ao fim. Um último vento remodelava a cidade: era contemplador, triunfante, e dançava harmoniosamente ao redor das cores intensas da noite.