sábado, 14 de março de 2009

Capítulo 17 - Todos Os Ventos

O ônibus parou bruscamente no ponto graças à sinalização atrasada de Jorge. Ele e Marina subiram naquele monstro poluidor indiscutivelmente útil. Sentaram com calma em dois bancos vazios no fundo — o garoto ficou do lado da janela. Ele fitou a janela: as gotas bruxuleantes escorriam pelas vidraças do ônibus; o rapaz fechou os olhos, suspirando ruidosamente.
— Jorge — chamou Marina, ao lado dele — Você parece meio tenso. Tem algo te incomodando? — e inclinou a cabeça para olhá-lo nos olhos.
Ele virou-se para ela rapidamente, desviando o olhar em seguida, rindo e corando. Respirou fundo e encarou os próprios joelhos.
— Marina — ele exalava uma firmeza incomum na voz — Escuta...
Um punhado de vento entrou por alguma fresta. Jorge arrepiou-se, ao mesmo tempo em que um cheiro doce de leite quente da sua perspicaz infância invadia-lhe a alma. Marina também sentia algo parecido, mas numa proporção menor.
O mundo inteiro, sussurrou ele, mentalmente. E mergulhou naquela galáxia de emoções por um tempo idiotamente curto, mas que valia por toda a eternidade.
— Jorge?
E Jorge voltara. Os joelhos ali na frente de seus olhos, e Marina, ao seu lado, aguardando sua fala.
— Ah...! Não é nada! — e riu para si, de olhos fechados, com vergonha da própria covardia.
Mas, de súbito, ela pôs a mão sobre o braço dele — aquela mão tão delicada e ágil. E fria!
— Jorge, veja bem... — ela falava com uma graciosidade fora do comum — Eu não sei o que você tem, mas, consigo entender que talvez esteja passando por um momento conturbado — ela tirou a mão do braço de Jorge e, para o total assombro do rapaz, pôs entre os cabelos negros de Jorge — Por isso, relaxe. Seja o que for, vai passar.
Enquanto a Av. Brigadeiro Luís Antônio ficava para trás, ele olhou-a nos olhos, assustado, mas em deleite. Um sorriso angelical vindo dos lábios dela fez com que suas estruturas desmoronassem e Jorge desabou em lágrimas vertiginosas, ao passo que um segundo punhado de vento invadiu o interior do ônibus, dessa vez com certa quantidade de vapor gélido, enriquecido com aqueles aromas memoráveis daquelas esquinas que viramos uma única vez na vida.
— Esse vento — murmurou Jorge, ainda com o rosto ensopado de lágrimas — É o vento daquele dia... Posso ver tudo. Elas, ali. Sorrindo, retardadas. Minhas primas. Lindas, apesar de tudo, mas eu nunca morreria por nenhuma delas, essa é a verdade... Talvez a Ana, mas não, prefiro me recusar a admitir isso. Estou lá...
A garota dos cabelos muito cacheados, confusa, segurou o rosto de Jorge com a mão direita, dizendo num tom mais sério do que todas as outras vezes:
— Você não está bem, Jorge. Não mesmo. Não entendo o que diz, mas é melhor que você mantenha-se firme, aqui, no presente. Lembrar do passado pode ser muito bom, mas arrastar-se de volta para ele é um tanto arriscado. Fique aqui, comigo. Tudo bem?
— Minha mãe... Ela sabe de tudo isso, ela sente também. Eu não posso ficar aqui.
— Você precisa! Idiota! Você faz parte desse mundo, desse tempo! — e, puxando de leve os cabelos dele, empurrou-lhe a cabeça no vidro da janela, falando com um tom aridamente divertido: —
É tão difícil entender isso?
O garoto se assustou, voltando a si, envergonhando-se pesadamente. Esfregou as mãos no rosto, deu um suspiro esganiçado e voltou-se para Marina:
— Será que... seria muito difícil se nós dois tentássemos excluir isso da memória?
Marina sorriu, desviando o olhar, balançando as pernas como uma criança dócil.
— Eu já vi muita gente meio problemática — respondeu ela — Relaxe.
— Obrigado — agradeceu Jorge, fitando a janela mais uma vez.
Do lado de fora, prédios cinzentos e impiedosos. Prédios..., pensava Jorge,
A eternidade do mundo está nisso. Nisso e no vento.
O tempo passava. Escurecia em São Paulo, cidade das luzes, das multidões, do movimento, das misturas, das cores, das emoções, das injustiças, dos ventos.
A cidade de todos os ventos.
— O Terminal Princesa Isabel está próximo — comentou Marina, com ansiedade — Vou precisar comer algo urgentemente!
— Idem! — disse Jorge, em meio a um sorriso distorcido.
Marina parecia distraída, agora, ao estudar o rosto do garoto.
— Eu não sei por quê... — começou ela, de súbito, levando a mão ao queixo num gesto forçado de parecer engraçada.
— Hum?
— O seu olhar... me lembra alguém. Esse olhar introspectivo, mas esperto, chegando a ser violento até. São castanho-esverdeados, mas parecem vermelhos, lá no fundo. Você é muito parecido com a Manuela.
Jorge, involuntariamente indiferente, questionou:
— Manuela? Quem é?
— Era — corrigiu Marina — Não tenho notícias dela há um bom tempo. Mas os momentos que vivi perto da ruiva foram muito singulares. Um ser humano ímpar. Talvez o mais incrível que já conheci. Ela tinha uma brutal, apesar de artificial, cabeleira vermelha, maravilhosa, perfeita. Não era um vermelho-alaranjado, tampouco um vermelho-vinho. Era vermelho, vermelho de verdade! Eu não saberia dizer, apesar de tudo, se ela era realmente tão especial quanto parecia — suspirou pensativamente — Mas, de qualquer forma, ela era totalmente contagiante. Ah! Chegamos no Terminal, Jorge!
Lá fora, haviam pessoas enfileiradas esperando pelos ônibus, impacientes, cansadas; Jorge e Marina desceram juntamente com os outros passageiros. Já passavam das 19h — o ar era fresco e animador. Os dois caminharam, sem pressa, até o quiosque no centro do terminal: tudo cheirava àquelas mini-pizzas de sabor questionável, mas isso só acentuou mais ainda a fome de ambos. As luzes amareladas pareciam se entrelaçar com o resto da realidade, mesmo que tudo não passasse de uma fétida noite comum. Jorge tentou não parecer tão emocionado por estar perto de Marina por todo aquele intervalo de tempo.
— Um pão de queijo, por favor! — exclamou Marina para a atendente do quiosque.
— Outro pra mim, por favor! — disse Jorge, quase em seguida. Apoiou-se de leve e centralizou a face de Marina em sua visão. A atendente logo veio com os dois pedidos. Jorge fez questão de pagar ambos.
— O que foi? — perguntou Marina, ligeiramente constrangida.
— É que... Talvez não seja da minha conta, mas, eu me pergunto, onde você esteve durante todos esses dias em que faltou no curso?
Marina, com extrema velocidade, discorreu uma mentira, evitando qualquer coisa que pudesse estar relacionada com a viagem para Amsterdã.
— Tive que fazer uma viagem de emergência. Alguns problemas graves na família. Sabe como é. — e terminou a frase com o clássico sorriso vivaz.
— Entendo — suspirou Jorge, não convencido. Continuou olhando-a, ainda sem dar nenhuma mordida no pão de queijo, enquanto ela comia o dela com voracidade.
— Não vai comer? — perguntou ela, apontando o lanche de Jorge.
Ele piscou, depois riu.
— Vou! — mas continuou fitando-a e, quase sem pensar, proferiu: — Seu rosto... Não!... Você, dos pés à cabeça — até o último fio de cabelo! É uma estrelinha que brilha no meio dessa cidade. Eu vejo São Paulo em você e vejo você em cada canto da nossa metrópole. Desde o primeiro momento, Marina. Desde o primeiro mísero instante. Antes era uma dúvida, agora estou convicto disso. Eu amo você, completamente.
Ela, em silêncio, mantinha os olhos arregalados e a boca entreaberta, as mãos apertando a metade do pão de queijo. Corava com veemência. Colocou o pão de queijo no balcão, segurando a mão direita de Jorge no segundo seguinte. E, quase como se brilhasse, ela... começou a chorar! As lágrimas de Marina eram raras e valiosas e, contudo, lá estavam elas. Aproximou-se mais dele, beijou-o na testa com uma expressão de dor profunda no rosto e sussurrou no ouvido do rapaz:
— Olhe para trás.
Devagar.
Surpreso, Jorge moveu a cabeça discretamente.
— O que, exatamente, quer que eu veja?
Marina curvou-se um pouco mais sobre ele — Jorge podia sentir o calor do corpo dela, enquanto os seios da garota, debaixo da blusa marrom, apertavam-se contra o seu peito.
— Um homem magro com uma bengala e uma mulher alta de cabelos coloridos. Estão bem ali, veja.
Ele se virou novamente com um pouco mais de sutileza, os olhos bem abertos, na espreita de visualizar algo totalmente bizarro; e viu-os, então: Jóhann e Isadora. A dupla olhava para todos os lados, exalando arrogância. Procuravam algo. Intimidando o mundo.
O dia perfeito para bombardearem tudo.
— Eles se desgastaram, Jorge. Mas vão me achar logo. Você está fora de qualquer influência, porém, é a peça que falta no tabuleiro. Você tem que fugir, agora. Não haverá uma segunda chance, mas tudo depende de como você agir.
Jorge ria, balbuciando, da situação. Estava mais em dúvida do que incrédulo, mas ria. Concentrou-se no rosto de Marina, bem diante do seu.
E então, ela correu. Em um bater de palmas, já havia se misturado com a multidão descolorida. Nenhum rastro da garota dos cabelos muito cacheados. Isadora e Jóhann pareciam ter evaporado também.
Isso foi um sonho?, indagava-se Jorge. Poderia ter sido; talvez fosse, mas não o dele. E um vento rasteiro, gelado e revelador golpeou-o, causando-lhe tremores irrefutáveis. Subitamente, uma brisa nasceu de lugar nenhum, ligeira, aparentemente sem direção. Eu poderia morrer em êxtase agora, suspirou ele. Imediatamente, foi até uma das filas para pegar um ônibus para casa. Lar, doce lar.
Mas, na extremidade esquerda de seu campo de visão, Jorge viu algo inusitado. Um vulto cinzento movia-se descontroladamente no meio de um número reduzido de pessoas distantes das filas avassaladoras. O vulto, então, se distanciou dali e, ainda em estado de desordem, vinha na direção de Jorge. Saltitou de um lado para o outro e depois parou. Agora estava defronte a Jorge. Via-se ali, em pé, uma mulher devastadoramente maravilhosa.
— Olá, Jorge — começou ela, engolindo-o com os elétricos olhos dourados — Me chamo Delphia. Já faz um tempo que ando te procurando. Você não faz idéia do quanto é importante para todos nós. Eu ficaria muito grata se você pudesse vir comigo... — sorriu encantadoramente, fechando os olhos, o que permitiu que Jorge se livrasse, por um instante, daquele estado de enlevo em que havia sido aprisionado — Por favor! Tenho muita coisa pra te contar, querido...
Uma cena brumosa e desfocada inundou a consciência de Jorge: a memória do rosto desorbital de Marina manifestava-se com severidade e palavras nunca antes ditas por ela ressonavam agora em sua cabeça:
Não acredite. Não confie. Duvide. Mas não deixe de viver.
Ainda com uma tendência à covardia, Jorge, no âmago de sua tenuidade, mergulhou nos olhos de Delphia. Era apaixonante, mas ele sabia como blindar-se.
Não. — murmurou.
Eis que o garoto simplesmente virou as costas e começou a andar. Delphia, estatualizada, ria mecanicamente, sem poder fazer nada: qualquer ocorrência desencadearia, de vez, uma guerra clara e mortal entre os Eve e os Delphia. A diretora da agência, ali parada, não desejava isso. Não ainda. Que continuassem, pelo menos por mais um período, nessa incoerente pseudo-Guerra Fria.
Uma chuva pesada começava a cair em São Paulo. Trovões escandalosos destruíam a calmaria. Jorge embarcou no ônibus que o levaria para casa, mas antes deu uma sagaz olhadela por cima do ombro: Delphia havia desaparecido. O garoto passou o bilhete único no identificador, atravessou a catraca e se sentou ao fundo — um homem surpreendentemente obeso fedendo a cerveja espremeu-se ao seu lado: Jorge adormeceu tão rápido que mal teve tempo de se sentir incomodado.
O dia 8 de Setembro de 2008 estava chegando ao fim. Um último vento remodelava a cidade: era contemplador, triunfante, e dançava harmoniosamente ao redor das cores intensas da noite.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Capítulo 16 - Delphia

— Antes de qualquer coisa — começava a dizer Leon, dentro do vestuário, a todos que ali estavam presentes —, temos que recapitular certos detalhes à respeito do que Amsterdã representa para nós. E, principalmente, os possíveis problemas que possam surgir.
Estavam todos sentados ao redor de uma mesa branca retangular, em silêncio absoluto — exceto pelas baforadas ruidosas que Isadora dava a cada final de tragada de seu cigarro. Leon ficou de pé, apoiou as mãos na mesa e com um meio-sorriso, olhou nos olhos de cada um deles.
Jóhann levantou a voz:
— Quando o senhor se refere a problemas... Isto estaria, de alguma forma, relacionado com...
— Sim! — interrompeu Leon com brutalidade.
— Mas então... O que pode ser feito?
Silêncio mais uma vez. Leon se sentou, cruzando os dedos atrás da cabeça.
— É um assunto delicado. — disse, fechando os olhos em seguida.
Isadora deu uma baforada violenta.
— Acredito — ela pôs-se a falar com desdém — que os seus assistentes aqui possam tomar conta disso. Não precisamos gastar energia à toa, pelo menos não por enquanto.
Ivan, em dúvida, exclamou:
— Ora! Eu não sabia que havia um limite de uso para a energia de vocês... Não são semideuses? Como pode dizer que a sua reserva de poder será gasta?
— É aí que você se engana pequeno Ivan. Além das nossas limitações, também possuímos esse “defeito”. Nós precisamos recarregar toda a energia que usamos.
— Pois então prove! — gritou ele, uma risada maldosa estava prestes a saltar para fora de sua boca.
Apagando o cigarro num cinzeiro próximo, Isadora apenas murmurou:
— Tudo em seu tempo, Ivan. Tudo em seu tempo.
Ele balançou a cabeça e bufou, revoltado. Olhou para Leon — o diretor pôs-se a falar brandamente.
— Relaxe, Ivan. A Entidade é uma existência quase inofensiva agora. Já se foi o tempo em que ela podia nos causar dores de cabeça. Você e os outros poderão lidar com ela de mãos atadas caso algo chegue perto de acontecer. Isadora, Jóhann e eu somos os únicos que poderão agir na hipótese das coisas saírem fora do controle. O ideal é que economizemos energia, de fato.
O assistente olhou para os lados, riu e perguntou.
— Sair do controle? Do que está falando?
Leon suspirou, dessa vez muito profundamente.
— Bom — começou ele, com uma pausa — a verdade é que... Há uma agência aqui em Amsterdã. Uma agência que conhecemos muito bem. São demônios, Ivan. Demônios. Prontos pra perturbarem os nossos planos, os planos da Agência Eve.
Ivan deduziu algo rapidamente.
— Você não estaria falando dos Delphia... Estaria?
— Na mosca! — soltou Leon, dando uma piscadela para Ivan e sorrindo melancolicamente.
O terceiro silêncio dominou a sala. Jóhann se levantou com velocidade mas delicadeza, foi até o canto superior esquerdo da sala e derramou um pouco de café quente da garrafa térmica numa pequena xícara. Deu uma mísera golada e voltou para a mesa trazendo a xícara consigo.
— Está um pouco forte, mas muito bom. Se eu fosse vocês, tomaria um pouco.
— Boa idéia — comentou Isadora, levantando-se e realizando exatamente o mesmo procedimento — Está realmente ótimo!
O diretor voltou a falar com uma sutil lentidão na voz:
— O que realmente deve ser prioridade agora — passou a mão pelos cabelos — é encontrarmos o paradeiro exato de Sara. E temos que encontrá-lo logo. Tanto eu, quanto Isadora e Jóhann, somos dotados de uma pseudo-onisciência, isso não é novidade. Só há uma maneira de obtermos o êxito existencial e, bom... Por ora, basta dizer que encontrar Sara é o primeiro passo. Sem isso, nada irá se desenvolver de maneira satisfatória. Preciso que fixem isso na mente de vocês, Ivan, Lafaiete e Julian. Tudo só irá ocorrer de maneira harmoniosa se vocês colaborarem com tudo o que puderem. É pra isso que estão aqui. Vocês sabem disso. Não há volta. Não há desistência. Não há dúvida. Vocês apenas obedecerão. Essa sempre foi e continuará sendo a função de vocês. Questionar-me é irrevogável — ele voltou para pegar mais café, e continuou falando —, por isso, é bom que saibam exatamente o que pensam — tomou um gole, dando uma pequena soprada —. Agora, vão. Encontrem Henry e os jovens. O passeio deles terminou.
Mas, de súbito, um guincho ensurdecedor invadiu a sala. Era Isadora, com as mãos apertando a cabeça, as pupilas haviam sumido, e aquele som devastador jorrava desesperadamente de sua boca. Leon olhou, surpreso, fazendo um sinal para Jóhann, que imediatamente segurou as mãos de Isadora com extrema força, abaixando-as e começou a sussurrar algo inaudível no ouvido dela. Aos poucos o grito foi se acalmando, até se extinguir por completo. Isadora voltou ao normal, as pupilas haviam retornado, mas uma encarnação do pânico ainda permanecia dominante em seu rosto.
— Isa — perguntou Jóhann, ligeiramente alarmado — O que foi?
Ela olhou nos olhos dele com profundidade e assombro.
— Problemas.




Andando desordenadamente por Amsterdã, Luiz, Cecília e Marina cantarolavam músicas bregas com uma felicidade fora do comum — pareciam já estarem bêbados antes mesmo de beberem qualquer coisa. Quando pararam em frente a uma lanchonete barulhenta, ouviram uma voz recente e conhecida os chamando.
— Jovenzinhos!
Olharam para trás: era Henry. Sua feição era de total desprazer.
— Henry? — disse Luiz, quando o assistente se aproximou — O que foi? O Red Light District estava tão desagradável assim?
— É — suspirou ele, o suor escorrendo no rosto — Digamos que fui interrompido no melhor momento. Mas, isso não importa agora. O nosso passeio foi cancelado. Temos que voltar.
— O que aconteceu? — perguntou Marina, colocando as mãos na cintura e olhando para Henry intimidadoramente.
— Você vai precisar ser forte, garotinha — e pousou a mão com carinho na cabeça dela.
Marina, mesmo sem saber exatamente o que havia acontecido, começou a chorar intensamente, caindo de joelhos na calçada. Luiz abaixou-se, abraçando-a e tentando fazê-la se levantar. Fitou Henry com fúria.
— O que houve? Droga! Por que ela está chorando?
Henry colocou a mão direita no bolso, virou as costas e acenando com o outro braço, falou:
— Venham, me sigam. Eu conto no caminho.
Os três caminharam inquietos, a intuição de cada um dizia que algo realmente preocupante havia acontecido. De repente, o ar ficou ardidamente frio. Cecília agarrou o braço esquerdo de Luiz, enquanto o direito estava ao redor do pescoço de Marina. Tensão e medo começavam a tomar conta dos jovens de uma maneira totalmente indesejável.





Sussurros, sussurros, escuridão: o mundo era feito disso. Nenhuma luz. Nada. As memórias misturavam-se. Os sentidos iam trocando de lugar. Não havia qualquer coisa que pudesse fazer sentido.
Mas, subitamente, ele ouviu uma declaração de amor. Era ela, Manuela.
Um mundo vermelho, vermelho-sangue, surgiu. Um barulho ruidoso, explosivo, distorcido e a mesma voz etérea de antes começava a falar novamente. Não há amor, dizia. E a escuridão voltara.
Porém, Dante, no coração do mundo, gritava com as forças mais potentes de sua alma, gritava contra tudo, contra os deuses, como uma fera, e gritava uma só coisa: Manuela!
Ela respondia com uma voz fraca, mais uma vez declarando seu amor. E o mundo vermelho retornava. As coisas triviais começavam a voltar. O mundo pesado e real vinha juntando-se às consciências dos dois. A voz etérea parecia se desesperar, gritando repetitivamente: O amor não existe, não deve, não pode, não é isso! Mas era tarde demais. Um flash levemente ofuscante foi a primeira coisa que Dante e Manuela viram quando voltaram ao mundo real.
E lá estavam eles: era um quarto azul-claro, muito espaçoso, com duas dúzias de camas, sendo que apenas uma era de casal — Dante e Manuela acordaram deitados nela. Olharam-se, perdidos, sem ver nada além deles mesmos, mas em seguida se abraçaram em euforia, um chamando o nome do outro como se não se vissem há anos, mesmo sem saber absolutamente nada do que havia acontecido. Beijaram-se inúmeras vezes.
— O que... O que... — Dante gaguejava, sem conseguir raciocinar com eficácia.
Manuela colocou o dedo indicador nos lábios dele, pedindo que ficasse calmo. Beijou-o na testa, acariciando-lhe os cabelos.
— Nós estamos bem. E juntos. Isso é o que importa. — sussurrou ela, roçando os lábios no ouvido de Dante.
Dante fechou os olhos, arrepiando-se, e entregou-se à sedução da garota ruiva. Inclinou-se, tocando com os lábios o misterioso e suave pescoço de Manuela — o pescoço era a divisão suprema entre mente e corpo, onde tudo entrava em dilema, mas talvez Manuela soubesse lidar perfeitamente com ambos.
De supetão, Dante e Manuela assustaram-se — alguém batia palmas em algum lugar bem próximo dali. Uma voz rouca e feminina irrompeu o ar.
— Vocês são seres belíssimos, que coisa linda... Como podem achar que se amam tanto? Onde está a prova? Preocupam-se mais em ficarem se osculando do que em saber aonde vieram parar. Que tolice. Como eu disse antes, o amor não existe, e é uma pena vocês não estarem a par disto.
Os dois viraram a cabeça em todas as direções, procurando o dono da voz, mas não encontravam nada.
— Quem é? O que quer de nós? — Dante berrava frases previsíveis.
O som de passos se aproximava. Uma porta à direita, antes não vista por eles, agora se abria. Uma mão bastante branca segurava a maçaneta, seguida de uma figura espetacular. Era uma mulher angelical, a pele muito clara, os cabelos esvoaçantes prateados, as vestes cinzentas e flutuantes; ela própria também flutuava. Era uma deusa, um anjo. Os dois jovens paralisaram-se com a beleza irreal daquele ser.
— Olá, meus queridos — disse ela, a voz rouca agora estava adocicada e, mais uma vez, etérea — Vocês terão muita coisa para aprender aqui. É normal vocês se sentirem atraídos um pelo outro. Mas não há tanto amor quanto parece. Não compreendem agora, eu sei. É o calor humano, a síntese humana, essa mistura química, mistura de pensamentos. Deram a essa tolice o nome de amor. O amor não é isso. O verdadeiro amor... Bom, isso vocês irão aprender comigo. — e deu uma risadinha élfica.
Os dois jovens a seguiam com olhos assustados. Ela se aproximava sem tocar o chão com os pés. Era hipnotizante. Sentou-se meigamente na beira da cama em que Dante e Manuela estavam. Fitou-os: os olhos dourados queimavam de tão ofuscantes, de tão belos.
Manuela tomou coragem e perguntou subitamente:
— Quem... Quem é você?
Ela sorriu pomposamente, mas era algo que causava uma incompreensível sensação de enlevo.
— Eu tenho vários nomes, minha pequena Manuela. Mas o meu nome mais popular, que por sua vez representa todo o âmago da minha individualidade consciente é... Delphia.

sábado, 31 de janeiro de 2009

Capítulo 15 - Amor

O nariz de Manuela coçou levemente quando o avião aterrissava numa extensa superfície plana. O cheiro do ar era outro. Depois de Leon, Isadora, Jóhann e dois dos quatro agentes, Manuela foi a primeira dos jovens a desembarcar; e o que viu, do lado de fora, se não era assustador, pelo menos causava alguma inquietação: era um estádio de futebol - o Amsterdam ArenA. Perfeito, único.
— Vocês sabem que horas são? — indagou Leon, após todos se encontrarem do lado de fora do pequeno avião.
Ninguém respondeu.
— São onze da manhã, do dia 16 de Agosto. Talvez alguns se surpreendam com a inimaginável aterrissagem dentro deste belíssimo estádio, mas creio que já conheçam as nossas capacidades sobrehumanas o suficiente para que eu me sinta confortável para poder me privar de quaisquer explicações. — deu um sorriso torto, virou-se — Sigam-me. — disse, por fim.
Foi caminhando vivazmente na direção de um dos vestuários, os outros o seguiam. O sol estava relaxante no seu calor, refrescante, batendo na testa de Manuela. Mas, de repente, ela rapou.
— Dante! — chamou ela.
O rapaz se virou imediatamente, olhando com profundidade nos olhos azuis da garota, a feição confusa mas séria.
— Que foi? — perguntou.
— Olhe — ela apontou para uma direção indefinida, para o alto, talvez para o céu.
— O que está vendo? — perguntou o garoto, curioso.
— O céu. Você se lembra?
Ele levantou a cabeça mais uma vez, deixando-se observar longamente o céu azul-claro com poucas nuvens — eram poucas mas havia um punhado encobrindo parte da luz solar... Um punhado de nuvens cinzentas, carregadas. Só aquele punhado.
— Como eu conseguiria esquecer, Manuela? Como eu poderia?
E encarou-a com um sorriso bondoso na face. Ela retribuiu o sorriso, dizendo:
— Você... é especial pra mim, Dante. Mais do que eu poderia imaginar. Me desculpe por aquele dia. Talvez você seja a única pessoa que realmente me compreende. Acho que eu estava errada.
Dante segurou as mãos dela com certa firmeza, dessa vez com um olhar sério e intimidador.
— Manuela, você entende, não é mesmo? Desde aquele dia, o dia em que o céu estava assim, o dia em que nos conhecemos... Você sempre foi a coisa mais importante pra mim. Mais do que tudo. Tudo, Manuela.
Seus rostos ficaram muito próximos. As respirações misturavam-se. Nervosismo, corações disparando. Sorrisos e olhares de encanto. Ali, no meio do Amsterdam ArenA, na frente de todos, os lábios deles se tocaram gentilmente, depois se separaram e voltaram a se tocar uma última vez.
— Eu te amo. — disse Dante, dessa vez com uma expressão rara de extrema felicidade.
— Eu também. Sempre. — sussurrou Manuela, com ternura.
E, dessa vez de mãos dadas, correram para acompanharem os outros que seguiam Leon.
Cecília estava próxima e vira a cena; seu coração doía: inevitavelmente, o que sentia pela amiga era algo maior do que uma simples atração física. Havia o sentimento do amor relacionado à amizade em si, claro, mas existia algo mais. Um outro amor, diferente.
— Eu ainda vou... lutar por ela! — pensou, quase falando.
Leon se aproximava da entrada de um dos vestuários, o grupo o seguia com interesse. Ele abriu a porta dupla e ficou para na frente da mesma, virando-se para os outros.
— Isadora, Jóhann, Ivan, Lafaiete e Julian, vocês entrarão comigo. Henry, você pode ir com os jovens, mostre-os um pouco do que é Amsterdã. Mas tomem cuidado, acima de tudo.
Sorriu como um velho enrugado e, de alguma forma, ele era exatamente isso.
— Ok, senhor Leon. — respondeu Henry com convicção.
Henry era um assistente bastante útil. Velocidade e destreza eram as características que mais o favoreciam e acabavam contribuindo para a sua ascensão na Agência Eve. Sua aparência, no entanto, era consideravelmente duvidosa: o rosto espinhento, os longos cabelos ondulados, amarrados em um rabo de cavalo, e o corpo jovem e musculoso o faziam aparentar, no máximo, uns 25 anos de idade, mas era impossível ter certeza, afinal, ele também não deveria ser um ser humano comum, apesar de também não chegar nem perto de ser nenhum deus — não que Isadora, Jóhann e Leon fossem isso em suas essências.
Depois que os "convocados" de Leon adentraram no vestuário, Henry se virou para os jovens com um largo e forçado sorriso no rosto.
— É... parece que eu vou ser a babá de vocês hoje.
Ninguém riu. Os cinco o seguiram até o saída do estádio Amsterdam ArenA.
Do lado de fora, havia outro mundo. Amsterdã, uma cidade aquática, a Veneza do Norte, como diziam. As construções eram de cores diversas, nada fora do comum, mas o cheio da água era captável em qualquer ponto dali. A aparência era inovadora, mas... as pessoas e as sensações eram literalmente variadas.
— Então — começou Henry — Pra onde vão querer ir primeiro?
Dante fez uma cara irônica e disse:
— Ué... eu pensei que você fosse o nosso guia. Talvez você não tenha percebido ainda, mas nunca viemos aqui antes. Comecemos por onde você achar melhor.
O assistente coçou a cabeça com a mão esquerda, encarando Dante friamente. Depois sorriu, quase imperceptivelmente.
— Você está certo, rapazinho. Eu sou meio desatento mesmo! — riu de si mesmo, com muito mais tranquilidade agora — Vamos à um coffee shop então. Isso é o que não falta por aqui.
Mas não ia ser exatamente isso o que ia acontecer.
— Espere — falou Luiz, para a surpresa de todos — Eu tive uma idéia.
Todos fitaram o garoto cabeludo, atônitos.
— E o que você sugere, Luizinho? — perguntou Henry, com sarcasmo.
Luiz sorriu mais sarcasticamente ainda, e falou:
— Eu acredito sinceramente que... a maioria de nós quer fazer um tour pela cidade por conta própria. Você não precisa ser nossa babá, ninguém aqui é uma criancinha. Que tal cada um ir para onde quiser, e nos encontramos aqui mesmo, daqui a uma hora?
— Eu concordo! — exclamou Marina, entusiasmada.
— Eu também! — dessa vez foi Cecília quem assentiu.
Henry olhou para Dante e Manuela pelo canto do olho.
— Vocês? — perguntou ele.
Os dois balançaram a cabeça positivamente.
Com um fechar de olhos e um suspiro que significava indiferença, Henry parecia ter admitido a desejada derrota.
— Bom, então, que seja. Para mim não mudará muita coisa. Tomem, virem-se com esses duzentos euros. Eu queria dar uma passada pelo Red Light District mesmo, e é bem melhor ir sem vocês — riu para si — Só tenham certeza de decorarem o caminho de volta. É fácil se perder em qualquer lugar do mundo que nos é desconhecido. Até.
E saiu andando velozmente, com passos de alívio, por ter se livrado da responsabilidade de ter que tomar conta dos jovens, mesmo que tivesse sido um pedido de Leon. "Ele não vai se importar", pensou Henry.
Ainda parados em frente ao ArenA, os cinco se entreolhavam com inquietação.
Luiz quebrou os olhares:
— Acho que vou comer alguma coisa. Estou faminto. Quem topa?
Marina foi a primeira, seguida pelos outros três — mas, de imediato, Luiz pôs a mão direita no ombro de Dante e disse baixinho, de modo que só ele pudesse ouvir:
— Eu levo Cecília e Marina para poder deixar você e a Manuela mais à vontade. Vá em frente. Tenha uma boa conversa com ela. Termine de pegar de volta aquilo que sempre foi seu.
Dante quase riu da sutileza machista da última frase, mas concordou com a idéia.
— Obrigado. — falou.
Um instante depois, Luiz agarrou Marina e Cecília pelas cinturas e levou-as consigo.
— Vamos, vamos garotas! As cores da Veneza do Norte nos esperam! Vamos vagar por aí...!
— Espere... e os dois? — questionou Cecília, confusa e enciumada.
— Eles precisam desse tempo. Sozinhos.
Cecília, sentindo um aperto devastador no peito, olhava, ainda a uma certa distância, Dante e Manuela, parados como duas estátuas, os olhos dele nos dela: amavam-se em silêncio. E não havia nada que Cecília pudesse fazer. Eles se mereciam, se completavam; isso era inegável.
— Está com fome? — perguntou Dante à garota dos cabelos vermelhos.
— Sim. Muita. — disse ela, sorrindo perspicazmente.
Seguiram, então, na direção oposta da que Luiz e as garotas haviam tomado. Pararam na frente de um restaurante aparentemente não tão simples, mas também não tão espalhafatoso.
— Este parece um bom lugar. — comentou Dante, alegre.
Entraram — Manuela fez questão de escolher uma das mesas mais afastadas. Um garçom logo veio atendê-los — entregou dois cardápios sem dizer palavra alguma.
— O que vai querer? — interrogou Dante, a cabeça inclinada na direção do cardápio, mas com os olhos grudados em Manuela.
— Eu pensei em alguma coisa mais caseira e suculenta. Mas aqui tem muita coisa! — exclamou ela, colocando as duas mãos na cabeça e rindo — Não consigo escolher!
Dante acenou com a mão, chamando o garçom.
O homem, vendo que Manuela e Dante eram estrangeiros, pôs-se a falar em inglês.
— What can I do for you?
Dante tinha um inglês razoável, então, disse:
— Can you... bring me two sandwiches and two cokes, please?
— Of course. What you want in the sandwich?
— Well... I don't know, just bring me what you think was the best sandwich. Ok?
— Fine. I will.
O homem se virou, indo providenciar o pedido.
Manuela encarou Dante com olhos penetrantes.
— Seu inglês não é dos piores. — disse ela, ironicamente.
— Obrigado. Eu não fiz nenhum curso, nem nada... Acho que está razoável.
— De fato.
Trocaram sorrisos bobos e desviaram o olhar. O silêncio perdurou por um tempo, como se um estivesse tentando ler os pensamentos do outro. Quando olharam-se de volta, já pareciam ter tirado suas conclusões com relação ao que iriam dizer a seguir.
— Manuela, eu... — começou Dante, praticamente sussurando; sua boca tremia. Segurou as mãos de Manuela, acariciando-as.
Ela olhou pra ele, em dúvida, a interrogação formada na face.
— Estou ouvindo. — disse ela, ligeiramente apreensiva.
Dante suspirou profundamente e começou a discorrer:
— Naquele dia, Manu... no dia em que nós dois brigamos no ônibus. Uma coisa aconteceu, logo depois de você descer.
E fez mais uma pausa. Olhou para ela com olhos tristes.
— O que aconteceu, Dante? Pode me contar. Você confia em mim ou não?
— Eu penso que sim... afinal, você é a pessoa mais importante do mundo pra mim.
— Você tem o mesmo significado pra mim, Dante. Não importa o que seja, você não tem porquê me esconder algo.
Do lado de fora, uma garoa mansa caía, muda, sobre a cidade. Era um dia sombrio, mas... romântico, sensual, nostálgico. Havia uma beleza visceral dominando Amsterdã.
— A minha comodidade me impedia de falar, Manu. Um segundo depois de você descer do ônibus, meu pai apareceu. Apertou meu ombro, dizendo que queria conversar.
A garota arregalou os olhos, claramente surpresa.
— Seu pai? E o que vocês conversaram?
— Ele queria que eu ajudasse a inocentá-lo. Inocentá-lo pela morte da minha mãe, Manu! — de repente, via-se a fúria em seu rosto — Aquele desgraçado! Eu... eu... ele tentou me matar e...
— E o quê?
— Eu o matei.
Quando Dante terminou de proferir aquelas palavras, o garçom havia chegado à mesa, servindo os dois refrigerantes.
Here. The cokes. I'll come back to get the sandwiches.
— Ok. Thanks. — murmurou Dante, cabisbaixo, dando uma longa golada na coca.
Manuela coçou o nariz perfeito com a mão esquerda. Seus olhos, agora mergulhados em alguma dimensão profunda, mostravam que ela raciocinava intensamente sobre algo. Ao coçar o nariz novamente, dessa vez com a mão direita, disse:
— Isso faz de você um assassino, Dante.
Ele concordou com a cabeça, razoavelmente surpreso pelas palavras dela, soltando um leve suspiro, sem olhar para a garota.
— Mas — continuou ela —, mesmo que você não vá para o Céu — deu uma risadinha impura —, você teve um motivo considerável para fazer o que fez. Matar alguém não é uma coisa boa, mas... tem horas que não existe outra saída — isto é, a não ser que você quisesse ser morto por ele. Você lutou pela sua vida, Dante. Eu respeito isso, e admiro. O que eu sinto por você agora chegou a um ponto em que... é bastante difícil, se não impossível, de sofrer modificações, por qualquer motivo que seja.
Ela levantou a cabeça dele: lágrimas inundavam-lhe o rosto.
— Obrigado — disse ele, as lágrimas despencando mais ainda.
Erguendo-se sutilmente da cadeira, Manuela beijou os lábios de Dante com extrema doçura.
Mas, então, algo ocorreu. De repente um mundo escuro surgiu, e Dante e Manuela não puderam reconhecer mais nada, salvo uma voz etérea que, ao fundo, sussurrava: O amor... não existe.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Capítulo 14 - Pequenas Faíscas de Luz

Nas profundezas de um oceano onírico, uma garota de cabelos dourados derramava uma incontável quantidade de lágrimas sobre os corpos das pessoas mortas em alguma ocasião impossível de ser especificada. Toda a tristeza do mundo inundava a sua alma, mesmo que no fundo ela acreditasse, nem que fosse bem pouco, que a morte não era o fim. Era a sensação de uma perda sentida da forma mais primordial possível. A revolta, a incompreensão e o vazio. Os sonhos de Sara eram compostos disso — e quase que somente disto.
Foi com a imagem do rosto dela que Manuela acordou naquela manhã — a fria manhã do dia da viagem para Amsterdã. Levantou-se da cama e foi à janela: uma camada nostálgica de cores sombrias dominava grande parte daquela região da cidade de São Paulo. As nuvens negras provavelmente continuariam obscurecendo a metrópole até o fim do dia. A data: Quinze de Agosto de 2008, uma sexta-feira.
Ligou o rádio e colocou um CD: a faixa Sometimes, da banda My Bloody Valentine começou a tocar, e Manuela deixou-se envolver por todo aquele sentimento acolhedor e enlevante que o shoegaze da música proporcionava. Olhou o relógio de ponteiro pendurado na parede do quarto: eram quase nove horas da manhã. Cecília ainda deveria estar dormindo. “Vou deixá-la dormir até umas nove e meia...”, pensou Manuela. Deu uma bocejada sutil e partiu para o chuveiro.



A violência assolou a mente criativa do jovem Jorge no instante em que ele pousou os olhos na dilacerante cena: sua preciosa e amada namorada aos beijos com o garoto mais vulgar do colégio. Relacionavam-se com tanto fervor ali no meio da grama que Jorge viu o fogo do inferno dominar-lhe a alma. Olhou ao redor com fúria: a menos de um metro dele, havia uma barra de ferro que devia ter pertencido a alguma grade atualmente destruída. Apanhou-a e segurou o objeto com firmeza nas duas mãos. Uma incrível sensação de poder fazia, agora, par com o instinto violento que estava a apossá-lo. Fitou mais uma vez a cena da traição da namorada — descontrolado mas determinado, correu naquela direção. Quando os dois o viram se aproximar, rapidamente começaram a gaguejar tentativas de desculpas como “Não é o que você está pensando!” ou “Espera, eu posso explicar!”, mas isso, indubitavelmente, não ajudaria os traidores. Eles estavam nas mãos de Jorge, mas Jorge provavelmente não estava nas mãos de nenhum Deus.
— Vocês estão vendo essa barra de ferro que eu tenho aqui? — ameaçou Jorge — Observem bem. É com ela que eu vou manchar a minha alma e destruir a vida de vocês. E eu vou rir muito disso. Eu mereço a minha vingança. Se Deus não puder entender isso, eu prefiro acreditar no demônio!
Com força e intensidade, golpeou, no rosto, o garoto que beijava sua namorada, apenas fazendo-o sangrar. Não tinha o intuito de desacordá-lo logo de início, mas, na realidade, pretendia se certificar do total sofrimento do infeliz. Viu, de súbito, a namorada pegar o celular: imaginou Jorge que ela iria tentar chamar algum tipo de ajuda —, logo, acertou-a com a barra também, o que acabou desacordando-a, mesmo o golpe em si tivesse sido menos agressivo.
— Ahahahahahahahaha! — Jorge gargalhava e seu coração pulsava ferozmente.
Mais uma vez, bateu no garoto, e ria ao ver o sangue do desgraçado espalhar-se por todos os lados, espirrando com maestria e horror, o que seguiu mais uma seqüência de golpes, onde Jorge procurava acertar cada canto que acreditava serem merecedores de dor. Como último ataque, fincou, com toda sua força, a barra na palma da mão direita do jovem, atravessando-a e cravando-a no chão — e um grito doloroso, mortal e ensurdecedor ecoou por todas as extensões do colégio.


— Ei, Cecília! — falou Manuela, enquanto as duas tomavam café juntas na cozinha do apartamento — Tinha uma coisa que eu queria te perguntar a muito tempo. Na verdade, eu só perguntei pra uma pessoa antes, o Dante.
— Pode falar. Estou ouvindo.
— Tá bom... É uma pergunta esquisita, mas... Você já teve a estranha sensação de que... O mundo nos vê?
Cecília sorriu e respondeu com confiança na voz:
— Não é só uma sensação, Manu. O mundo nos vê. E pode ter certeza de que eu não estou sendo nem um pouco tendenciosa. O mundo nos vê de alguma maneira. Não só as coisas vivas, mas os prédios, as construções, os meios de transporte, as ruas, tudo isso pode parecer inanimado, mas existe alguma coisa ali... Alguma coisa tremendamente sinistra. Fico pensando se em Amsterdã também existe esse tipo de coisa. Quer dizer, existir, com certeza existe, só nos resta saber em que magnitude isso acontece. Mas vamos deixar essa conversa de louco pra lá, temos que nos apressar, vamos fazer as malas, amiga, vamos!
Cerca de vinte minutos depois as duas já haviam arrumado tudo e estavam prontas para sair (sim, uma das poucas vezes em que mulheres fizeram as malas tão rápido na história da humanidade!). Manuela usava um cativante vestidinho de listras horizontais brancas e azul-claras, enquanto Cecília vestia uma camiseta laranja onde a frase “Às vezes, sinto o mundo inteiro...” estava estampada, além de um sensual short branco que a cobria do fim da cintura até o início das coxas. Na entrada do condomínio, Jóhann as esperava na Ferrari Enzo prateada.
— Olá, meninas. Isso vai soar redundante, mas vocês estão mais lindas que nunca!
Todos riram. Entraram no carro e partiram.


Jorge abriu os olhos dentro do banheiro do colégio: procurava dentro da sua mente alguma solução para a enrascada em que havia se metido. “Seria mais fácil se eu tivesse matado os dois. Se bem que, como eu sumi com a barra de ferro, vai ser difícil eles provarem que fui eu!”, pensava ele; esfregou o rosto com as mãos e viu o sangue — rapidamente, pôs-se a ir à pia lavar-se. Sua vida havia desmoronado, indiscutivelmente. Não tinha mais motivos pra sentir felicidade, a não ser quando se lembrava da dor dos dois que havia flagelado.
— Aaaaaaaahhhh!!! — gritou sozinho, desesperado e enlouquecido.
Saiu do banheiro e começou a correr de olhos fechados, sem rumo, sem direção, esperando encontrar alguma coisa em seu caminho que o levasse a morte repentinamente; era covarde demais para um suicídio. Mas a verdade é que o pátio do colégio, naquele horário, era mais inofensivo que um ursinho de pelúcia. O máximo que conseguiria seria tropeçar em algum banco e ralar o joelho.
E foi basicamente isso o que aconteceu: Jorge desequilibrou-se ao esbarrar a perna esquerda num banco, acabando por cair pesadamente no piso de mármore branco. Quando ficou de pé de novo, viu um novo mundo. Era a cena mais dolorosa que já havia visto: logo ali, a meio metro dele, uma garota loira chorava, de joelhos, ao ver tanta desgraça junta no mesmo lugar — eram inúmeros corpos de pessoas totalmente distintas, um céu vermelho cobria a visão de seres humanos mortos de fome, sede, ou assassinados das maneiras mais cruéis possíveis. Jaziam ali, nos sonhos de Sara, aqueles que alguns poderiam chamar de injustiçados, mas isso dependia do ponto de vista. Se a morte era o fim ou não, não faria diferença, afinal, aquilo podia muito bem ser um penoso ataque de esquizofrenia.
Quando Jorge piscou, voltou ao mundo real.


Às 14h20min, a Ferrari de Jóhann avançava velozmente ao longo Avenida das Nações Unidas. Cecília e Manuela conversavam, ambas no banco de trás. São Paulo ainda vivia um dia esteticamente sombrio. Talvez fosse chover dali a poucos minutos, mas esses minutos também poderiam ser horas. Nada era certo.
Repentinamente, o islandês virou à direita numa rua que nem ele mesmo sabia o nome e acelerou numa velocidade mais rápida que antes — as garotas estranharam.
— O que aconteceu, Jóhann? Pra quê tanta pressa? — perguntou Manuela.
Ele apenas continuou acelerando. Uma Ferrari Enzo naquela velocidade chamava muita atenção (na verdade, em qualquer velocidade chamaria).
— Jóhann, o que está acontecendo? — insistia Cecília.
Eis que ele freou bruscamente: as duas meninas voaram um pouco para frente.
— Ali está — disse Jóhann, apontando para uma casa marrom consideravelmente esquisita do lado direito da rua — A base principal da nossa agência, a diretoria da Agência Eve. É ali que Leon, Isadora, eu e alguns outros assistentes, fazemos o que precisa ser feito. O avião particular de Leon está localizado no subsolo, debaixo do quintal dos fundos, em uma espécie de base secreta. Vamos lá, eles já devem estar nos esperando.
Jóhann estacionou a Ferrari ao lado de um Rolls-Royce Phantom no estacionamento da residência e desceu do carro — Cecília e Manuela desceram logo em seguida, carregando as malas (que Jóhann imediatamente fez questão de tomar delas para fazer a gentileza de levá-las ele mesmo); os três deram a volta na casa até ao quintal dos fundos. Todos estavam realmente ali, como Jóhann havia previsto. Leon, Isadora, Dante, Luiz, Marina e alguns assistentes. Todos.
— Já estava na hora! — exclamou Isadora ao vê-los.
Leon tirou do bolso uma chave aparentemente comum; dirigiu-a ao chão, onde arrancou um punhado de grama e, para surpresa de todos, via-se uma fechadura ali. Ele inseriu a chave e girou: o chão começou a tremer. A terra se deslocou levemente e era possível ver um buraco com uma escada: aquilo definitivamente era uma passagem subterrânea.


No ponto de ônibus, Jorge não sabia no que pensar. Olhou para o céu: alguns pingos caíam e uma tristeza imensa e abstrata engolia-lhe interna e externamente. Nos tropeços de sua vida, naquele instante choroso e revoltante, naquele instante tão emocionalmente grande, ele a viu mais uma vez. Os cabelos muito cacheados, o belo corpo, o belo rosto, mas acima de tudo, a sensação de independência e fascínio que ela causava. Marina. Eram conhecidos, faziam um cursinho juntos, à tarde. Apesar do muito amor pela namorada (que há algumas horas atrás havia acabado), Marina causava em Jorge uma espécie de paixão visual devastadora — mesmo que ele mal tivesse conhecimento da personalidade da garota.
— O-oi! — gaguejou Jorge. A garota acabava de se aproximar, sentando-se ao lado dele no banco do ponto de ônibus.
— Oi! — respondeu ela, sorridente mas receosa.
— E aí... Tudo bem? — o garoto estava consideravelmente “travado”. Não tinha intimidade com ela e não possuía muitos dotes comunicativos, isso prejudicava a conversa.
— Tudo sim... Só esse tempo que anda meio feio. E com você, tudo certo?
A chuva, sinuosa e ardida, ficava mais grossa — os dois estavam a salvo, debaixo da cobertura. Ao fitá-la bem nos olhos, Jorge mergulhava em profundo estado de encanto, afinal, eram aqueles olhos pungentes, castanho-claros, a coisa que me mais lhe chamava a atenção nela.
— Ah, comigo ta tudo normal também. Levando a vida.
A água despencava ferozmente do céu, a emoção e a tristeza cresciam juntos com o volume da chuva, Jorge estava estremecendo por dentro — não por motivo de a garota estar ao seu lado, mas por um motivo maior, por alguma razão que fazia daquele espaço de tempo algo extremo, entranhável, apesar de tudo que dissesse respeito à sua racionalidade estivesse sendo deixado de lado naquela cena. A data: Oito de Setembro de 2008.


Todos desceram aquela escada atípica e deram de encontro com um grande salão razoavelmente escuro onde se visualizava um avião — ou uma nave — de tamanho médio, cercado por alguns computadores e algumas alavancas.
— Aqui é onde fazemos os sapos fumarem até que explodam — disse Leon — e isso não é uma piada. Nós não somos pessoas totalmente boas, infelizmente, mas lutamos por uma causa maior, uma boa causa maior, que é salvar Sara.
Ao ouvirem aquilo, os jovens rapidamente foram remetidos ao encontro que haviam feito dois dias atrás, onde Marina havia revelado-lhes alguns segredos um tanto quanto questionáveis, mas indiscutivelmente valiosos. Apesar da dúvida, uma coisa tinha que era óbvia: Sara não poderia ser a única coisa pela qual Leon e os outros se interessariam. Era uma questão de lógica, nenhum ser pensante mantém a sua atenção direcionada a somente uma única coisa durante toda a sua existência; isso é inconcebível, de fato.
Leon fez um sinal para os assistentes: os quatro foram, cada um, para os quatro cantos do salão ativar as alavancas. Um ruído alto e mecânico irrompeu no ar. A superfície sobre as suas cabeças abrira-se em sua totalidade, e todos puderam ver o céu. O avião, no entanto, começou a erguer-se levemente sobre uma plataforma que levantava. Leon, então, fez o pedido final daquele “arco”.
— Vamos, subam meus jovens. Está na hora. Estamos diante do futuro. O futuro mais importante que vocês conhecerão. Entram e esqueçam-se do passado. Não acreditem, não confiem, duvidem, mas não deixem de viver!
E, como se todos de repente se sentissem totalmente expostos diante de um ser que aparentemente lia a incerteza em suas mentes, disseram impulsivos “Dane-se!” mentais para si mesmos e partiram rumo à capital holandesa. Era o dia que precederia uma história num mundo turbulento — não que a Holanda fosse um país turbulento, mas as prodigiosas e afligentes lutas psicológicas tinham força suficiente para representar esse mundo.
A data: Quinze de Agosto de 2008. O dia da viagem para Amsterdã.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Capítulo 13 - Uma Noite Antagônica

O tempo passava cada vez mais rápido desde o dia em que os cinco jovens haviam ouvido as explicações saírem das bocas de Jóhann e Leon. Estavam todos de volta à cidade de São Paulo. Leon havia dado-lhes o prazo de uma semana para que se preparassem antes da viagem para Amsterdã. No penúltimo dia de preparações, os cinco, por pedido de Marina, combinaram de se encontrar às 21h00min em frente ao MASP — o Museu de Arte de São Paulo. A noite estava razoavelmente quente, mas parecia poder esfriar a qualquer momento. A própria Marina foi a primeira a chegar, quinze minutos antes do horário marcado. Vestia um sobretudo pardo de lã pura sobre a camiseta branca e calça jeans azul-escura que usava. A sua "atmosfera" já não era mais a mesma de antes: um certo quê de amadurecimento penetrante tomava conta de sua personalidade. Mas ela ainda era, no fundo, a mesma garota que poderia ser infantil ou incoerente a qualquer momento, a mesma garota com dezessete anos chamada Marina; aquela lá, a dos cabelos muito cacheados.
Aos poucos, eles foram chegando: Luiz foi o primeiro a acompanhar Marina na espera pelos outros. Ele veio bem vestido, apesar de sua questionável situação financeira. O rapagão de dezoito anos apresentava-se todo de preto, exceto pela jaqueta vermelha aparentemente velha que vinha trazendo nas mãos.
Cumprimentou Marina com um beijo no rosto e disse:
— Será que é um bom momento pra dizer que você está congestionavelmente linda?
A garota, corando e dando um sorrisinho bobo, agradeceu, mas desviou o assunto em seguida.
— Não sei se é um bom momento ou não, mas ultimamente eu tenho andado muito pensativa. Leon e aquela espiral bizarra dele não me saem da cabeça. Jóhann e Isadora parecem esconder algo. E eu ainda tenho minhas dúvidas a respeito daquela garota Sara, mesmo que eu me lembre vagamente dela. Eu juro que, há um mês, viajar para Amsterdã era a última coisa que eu imaginava que ia fazer. Se bem que eu tenho a intuição de que alguma coisa inesperada ainda vai acontecer antes dessa viagem.
— Marina... Como você consegue ser tão fascinante?
Ela deu outro sorrisinho bobo, mas dessa vez não corou.
— Tá bom, tá bom, você, pelo jeito, não quer falar sobre o caso Sara — disse ela, rindo —, mas a reunião que eu marquei hoje é pra falar justamente sobre isso; ou melhor, eu vou apenas mostrar a vocês que eu sei coisas à respeito de assuntos muito importantes que demonstram as verdadeiras facetas desse tabuleiro obscuro onde nós somos as peças. Muita coisa vai acontecer em muito pouco tempo, e é melhor todos estarem preparados. Inclusive eu.
O garoto, surpreso e ao mesmo tempo confuso, imaginou que Marina estivesse fazendo algum tipo de piada — certamente, se fosse, tratava-se de uma das menos engraçadas.
— Haha... Ha...! — Luiz tentou forçar uma risada.
— O que foi? Qual é a graça?
"Então não foi uma piada!", concluiu ele, mentalmente.
Mais alguns minutos se passaram, dessa vez Cecília e Manuela chegavam ao local: ambas belamente trajadas: Cecília vinha com um vestido com listras brancas e pretas na horizontal, com um par de botas plataformas nos pés; Manuela vestia uma camiseta amarela da banda Sigur Rós, com a foto do Bebê Alien da capa do álbum Ágætis Byrjun estampado no peito, isto somado com a calça jeans preta e bem justa que usava — mas os cabelos vermelhos estavam bem ali, sempre encantando mais do que qualquer outra coisa.




— Boa noite! — disseram as duas, em uníssono.
Luiz, vendo as duas beldades se aproximarem, não pôde evitar outro comentário:
— Cara, eu estou dentro de um harém! Tomara que o Dante não chegue tão cedo!
Todos riram intensamente.
No céu azul-escuro, uma lua cheia brilhava singularmente. Luzes e faróis iam e vinham por todos os lados naquela Avenida Paulista angustiante, tanto pelo seu tamanho, quanto pelo significado dentro de toda a cidade. Todos esperavam Dante com inquietação, enquanto conversavam sobre assuntos triviais.
— Que camiseta esquisita é esta que você está usando, Manuela? — perguntou Marina, realmente sem ter o conhecimento do que se tratava aquele Bebê Alien.
— É da banda Sigur Rós — respondeu Manuela, com um cordial sorriso —, eles são islandeses, as músicas deles são muito boas. São instrumentais, com toques de guitarra e bateria, sei lá, é difícil encaixá-los em um único gênero, dizem que é pós-rock, mas o que eu sei é que é a minha banda favorita, de fato.
— Huumm... Interessante. — sussurrou Marina, vagamente.
— Está esfriando um pouco. — comentou Cecília.
— Dante... Ele está demorando. — soltou Luiz, contrariando a sua própria piada anterior.
Cerca de dez minutos silenciosos se passaram, e lá vinha o garoto Dante, numa calma e aparente autoconfiança jamais vistas antes: vestia uma calça jeans preta e uma simples camiseta branca sem estampa alguma; a barba, sempre malfeita, agora estava impecável — havia agora um brilho tão diferente no rapaz que Manuela, inevitavelmente, sentiu seus sentimentos revirarem-se dentro de si mesma.
Dante se aproximou e, acenando para todos, disse, com ternura:
— Olá, pessoal.
— Olá! — responderam todos.
Organizados um ao lado do outro, formando um círculo, sentados em um canto, sob o corpo principal do MASP, os cinco jovens estavam todos ali para decidirem, afinal, as suas vidas — levar ou não à sério os acontecimentos do dia 29 de Agosto de 1990 era algo extremamente definitivo e importante para o futuro que os aguardava. Marina, abrindo o "debate", falou, imponentemente:
— Senhoras e senhores...! — falou, rindo infantilmente — Essa espécie de reunião que eu marquei com vocês, na verdade, quer dizer mais coisas do que vocês imaginam. Primeiro vou deixar que falem — sim, muita gente já falou durante essa história, mas essas são as considerações finais —, e aí eu falarei por último, pois tenho uma informação extra dentro desse "jogo" no qual somos, forçadamente, as peças, de certo modo, manipuláveis!
E fez aquele sinal de aspas no ar com os dedos indicador e médio das duas mãos. Ninguém entendeu direito o sentido da palavra “jogo”, mas isto ia fazer mais sentido depois.
Trocas de olhares rápidos — Manuela e Dante, de súbito, sentiam calores imensos dentro de seus corações: a paixão dos dois, um pelo outro, parecia estar renascendo (apesar de nunca ter morrido completamente) naquela ocasião inoportuna. Havia todo um clima de parafernália no ar, uma parafernália de pensamentos suspeitos ou de emoções volúveis, todo mundo no meio da presença de uma desagradável falta de proximidade com relação aos outros. Isso soava estranho, mas era o que acontecia.
Na escuridão vasta e luminosa da noite, os jovens debatiam.
— Acho que devemos ter uma imensa dose de bom senso aqui — dizia Dante —, afinal, nós vimos Jóhann se tele transportar na nossa frente e ignorar esse fato é o mesmo que duvidar da própria realidade, isto é, quem nunca ouviu falar de Descartes e suas teorias sobre a impossibilidade de tudo? Tá, eu não quero entrar nesse papo, mas sejamos sinceros, se vamos duvidar do que aconteceu naquele dia, teremos que duvidar de qualquer coisa que aconteceu e vai acontecer na nossa vida. E isso, pelo menos por hora, não é ter bom senso. Não mesmo.
— Concordo — comentou Cecília —, e, apesar de isso me dar um frio na barriga bem incômodo, tenho vontade de esclarecer toda essa história da garota Sara de uma vez. Não há nada a perder, não pra mim; algo muito significativo, realmente não há.
— Sabemos que isso poderá ser arriscado — falou Manuela—, mas eu sinto que as intenções de Jóhann e Isadora, no fundo, são boas.
— Eu conheço aqueles dois a um tempo considerável — interveio Luiz —, creio que as intenções de ambos são boas, mas mesmo assim, devemos estar sempre com um pé atrás... Afinal, eles possuem poderes incompreensíveis e podem mudar de temperamento repentinamente: nessas horas, quem paga o pato somos nós.
Marina só observava, concordando (ou não!) com a cabeça a cada comentário feito. Aguardava o momento-chave para soltar a informação extra que possuía — talvez fosse um blefe; aliás, talvez ela estivesse blefando o tempo todo, desde o início; talvez ela não passasse de uma vigaristazinha querendo se aproveitar da indecisão humana para se sobressair; especulando ainda mais além, talvez ela fosse um ser sobre-humano assim como Jóhann e Isadora, com objetivos, razões e motivações duvidosas. Talvez.
A discussão continuava num ritmo quase frenético. Dante expressava suas opiniões de uma maneira raramente vista antes. Estava inspirado. De repente, quando o assuntou começou a se desvirtuar e parecer tomar um rumo mais descontraído, Marina os interrompeu, vendo ali a ocasião perfeita pela qual esperava. Olhou nos olhos de cada um, aqueles olhos castanho-claros tão especiais, tão infinitos.... Suspirou meigamente e começou a falar num tom suave, intrinsecamente vivaz e quase melancólico:
— Hum! Hum! Legal! Vocês com certeza já decidiram o futuro de vocês. Vão salvar a Sara, não é? Eu já imaginava que chegariam nesse consenso. Certo, certo. Vou olhar bem pra cada um de vocês aqui e dizer, do fundo do meu coração: vai ser uma experiência inesquecível! Mas falta um detalhe, só um. Sim, sim. A coisa toda não é só isso que parece. Toda essa historinha da busca por Sara não é mentira, mas eu acho que eu poderia chamar ela de pretexto; sim, sim, um pretexto praquele diretor Leon e sua agência misteriosa nos vigiarem bem debaixo dos narizes deles. Pois é. O que eles realmente querem não é salvar Sara. Quer dizer: não são só eles que estão atrás de Sara e atrás de nós. Existem outras agências, de fato, mas é melhor detalhá-las uma a uma em outra oportunidade. Eu faço parte integral de uma delas — mas não se preocupem, eu não tenho esses “poderes”, pelo menos acredito que não, até porque eu não preciso deles. As citadas agências, na realidade, se preocupam com um fator comum: a dominação do planeta através de ameaças bioterroristas, ao mesmo tempo em que querem usar estas ameaças para forçar as pessoas a cuidarem dos problemas ambientais mais remotos — e, não, eu não estou falando de nenhum problema específico, até porque isto seria uma horrível generalização. Tirando esse fator comum, as agências possuem vários pontos divergentes, e, comparando a minha agência com a de Leon, talvez o mais importante deles seja a questão relacionada à observação humana. É uma história muito macabra. Existe um boato sobre mutações genéticas e lavagens cerebrais rondando a agência de Leon, mas eu não posso afirmar nada. Eu só posso afirmar uma coisa, por enquanto: eu sou uma espiã dentro da agência de Leon.
Dante foi o primeiro a questioná-la, depois daquele tiroteio de palavras bizarras e concepções questionáveis:
— Marina, me responda uma coisa: algumas dessas agências têm nome, por acaso?
— Sim.
— E qual o nome da agência de Leon?
Eve. Não sei o significado, mas o nome é esse.
— Sei, sei... E o nome da sua agência?
Delphia. Eu sei que parece uma grande maluquice, mas é verdade. Por hora não dá pra explicar cada detalhe, desde a origem (e o motivo da origem) dessas agências, mas vocês ainda vão ter a chance de ouvir. O mais importante é que vocês tenham em mente o seguinte: eles podem estar nos observando agora; eles podem estar nos observando o tempo todo. Eles querem algo de nós, não sei ao certo o quê. Sara é um pretexto. Guardem isso na cabeça de vocês.
Um riso ecoava dentro de Marina. Um riso puro de quem conseguia entortar a mente dos outros. Se era um riso de mentira, ou de enganação, não havia como saber. Mas tudo havia ficado anormalmente torto. E as mentes dos jovens ali — inclusive a dela —, estavam bem tortas.

domingo, 17 de agosto de 2008

Capítulo 12 - O Conto do Crepúsculo

"Em tempos imemoriais e, talvez, não pertencentes ao contexto geral desta narrativa, vivi momentos muito valiosos. Muitos já amaram; inúmeros já citaram tal tema em incontáveis circunstâncias; mas esta não é uma história de amor, é uma história de inquietação, de olhares anônimos, de repetições dolorosas, de paciências torturantes, mas não deixa de ser uma história definida como a queda da razão diante da emoção... E, neste caso, tal queda proporcionou um indescritível poder de causar sofrimento. Afirmo-lhes isso, pois, um ser humano sofre neste instante. Palavras provavelmente não chegarão perto de toda a síntese dos acontecimentos. Eu estava apodrecendo por culpa própria, envolvido por uma armadura de energias duvidosas, mas isto não me impediu de deitar meus olhos nela, naquela garota, como se o mundo fosse maior, mais livre, mais independente, mais carismático, mais perto do fim. Olhei bem para ela: era uma doce face construída com louvor, com sutileza, com capacidade absurda de prender a atenção de um indivíduo do sexo masculino — e talvez de alguns do sexo feminino também. Primeiro, me pareceu de estatura baixa, depois vi as curvas sinuosas e gráceis do seu corpo, o que me fez, suspeitosamente, achar que não teria como me esquecer dela com alguma facilidade. Porém, eram o rosto e os cabelos os que mais me sugavam mentalmente; era possível que, em um milhão de mulheres no mundo, não se encontraria um ser cósmico e distinto como aquela moça, e como os cabelos dela, isto é, os cabelos em conjunto com aquele seu rosto soberbo; digo, só um tempo depois, na conformidade real das coisas, eu viria a perceber que ela se tornaria evidentemente inolvidável para mim.

Aquele era o primeiro dia de aula de muitos outros que viriam dentro daquele ambiente, sempre às tardes... Aquelas tardes estranhas, às vezes escuras, às vezes claras, às vezes as duas coisas, mas, muitas vezes, desgraçadamente melancólicas também; talvez isso me gerasse inspiração, mas ao mesmo tempo, estupidez, insegurança, medo — ou, na conclusão de fatores tão fúnebres: uma sensação de incompatibilidade com o mundo. Sim, sim, era sofrível, mas talvez a culpa disso tudo estivesse em atos passados, em perdas de oportunidades, em falta de habilidade nos momentos mais cruciais...! Mas é melhor que joguemos a subjectividade no lixo agora, pois a história que se segue não é nenhum pouco feliz — ao menos no seu final, com certeza não.

A vez que falei com ela foi numa das tardes claras: lembro-me como se fosse hoje, a vivacidade de sua fala, o balançar dos cabelos, e, enquanto nos perdíamos em diálogos triviais, eu já sabia que, a partir dali, uma bola de neve psicológica começaria a rolar. Era o seguinte: entre as aulas insuportáveis, o peso da rotina e o cansaço preguiçoso, teria de haver algo que pudesse deixar tudo mais leve, mais admirável — algo que me desse mais vontade de estar lá. E esse algo, como eu tinha começado a constatar, era ela.

— Você gosta realmente dela? — perguntou Carlos à mim, numa das tardes mais escuras.

— Eu não sei. Eu sinceramente não sei, mas prefiro dizer que sim. Esquecê-la talvez seja fácil, mas se eu o fizer, nada mais será interessante aqui.

— Ela tem uma relação muito boa com o namorado dela, você sabe. O mais provável de se acontecer numa situação dessas é você sair com o coração esquartejado!

Enquanto pensava e repensava sobre os conselhos de Carlos, eu ainda insistia em observá-la ininterruptamente. Afogado na obviedade da minha razão e na teimosia das minhas emoções, deixei o tempo passar. O frio no estômago foi ficando cada vez mais freqüente e incômodo, na mesma proporção em que a vontade de ir vê-la aumentava. Era um amor impossível — se é que algo assim existe —, mas eu sentia uma mínima parcela de esperança brotar dentro da minha mente, porque, com uma anormal perspicácia, minhas capacidades racionais iam sendo arrastadas para o fundo de um poço que poderia não ter fim.

Pensamentos maldosos e pesadelos desesperadores invadiam-me vez ou outra, o pânico me dominava numa quase total escuridão, e uma lucidez existencial me corroía por dentro: se a vida eterna existir, como alguém conseguirá agüentar a si mesmo até sempre? E se ela não existir, a não-existência deve realmente ser temida? Tudo era um beco sem saída, uma espera por nada, em qualquer aspecto ou ângulo que eu podia tentar visualizar; e ela, a moça, de repente, aparecia no meio de tudo isso, me fazendo sofrer, mas era um sofrimento suportável até então. Na proximidade com ela, a resplandecência vinha, mesmo que houvesse a impossibilidade de uma relação mais profunda.

Num fim de semana árduo e cansativo, eu desejei. Desejei poder tê-la mais do que tudo, mais do que qualquer pessoa ou coisa, mas não tê-la como um objeto, apenas desejei poder ficar junto com ela durante o tempo necessário para que pudesse ter um valor mais memorável para mim. O sol das tardes vinham à mim em coreografia com os ventos das tardes frias, mas a melancolia era o número predominante: juntei tudo e todos dentro da minha consciência e pedi, com certo pesar por imaginar a existência do egoísmo naquele ato, que o desejo se realizasse cem mil vezes mais rápido do que o normal, se isso fosse realmente algo possível de acontecer. E eu comecei a esperar.

Mas a espera não foi tão longa. Tudo durou duas semanas. Minha auto-confiança renasceu das cinzas mais cambaleantes possíveis, onde, seguidamente, eu era remetido a uma seqüência quase cronológica de sensações de nostalgia que haviam me marcado no passado de forma indefinida, mas que, talvez por minha própria desatenção, haviam sumido da minha memória. E, num dos dias em que essas nostalgias ocorriam, a moça chegou, à tarde — e ela não se sentia muito bem. Ela não ficou muito tempo ali: foi embora no intervalo, enquanto eu ficava ali, numa aflição torta, já que no fundo eu queria acreditar que ela, agora tão frágil, vulnerável e fraca, fosse, no dia seguinte, adentrar naquela sala tão saudável como nunca. Mas quatro dias se passaram, sem que ela aparecesse. No quinto dia, recebendo a notícia mais dilacerante de toda minha existência, eu quis morrer, pois, sim, ela estava... Morta.

— Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!

Tudo havia desabado, todas as minhas esperanças, todas as minhas crenças, todas as teorias em que eu acreditava, tudo que pudesse servir como uma base para a minha manutenção estava desmoronando violentamente.

Mas, com o tempo, veio a calma, e com ela eu vi uma hipótese. Sozinho, num ônibus, sem rumo ou objetivo algum, pensei: 'O desejo que fiz, aparentemente, fez com que as coisas acontecessem ao contrário... Mas, há uma intuição tola dentro de mim, uma intuição que sempre esteve aqui. Eu não sei se posso acreditar em vida após à morte, reencarnação ou coisas do tipo, mas se o desejo for realmente se realizar o mais rápido possível, eu preciso morrer logo... Preciso morrer para ter você nos meus braços, preciso morrer para poder ver seus olhos pungentes, preciso morrer para acariciar seus cabelos muito cacheados, preciso morrer para poder, no mínimo, vê-la novamente... Marina!'. E, nada mais fazia diferença. Eu aguardava. Apenas aguardava. A morte viria — e eu não tinha tanta pressa, já que eu não vivia mais à mercê do tempo."



Jorge Santos Machado, São Paulo, Outubro de 2008

sábado, 9 de agosto de 2008

Capítulo 11 - Aurora - Parte Final

— Espere um momento! — disse Manuela — Se nós cinco somos as crianças que ela devia ter visto para que pudesse se livrar da doença, e ela provavelmente já viu quatro de nós, só nos resta irmos até ela e tirar isso à limpo de uma vez por todas!
Jóhann silenciou-se. Sim, era verdade, mas dentro de todo esse cenário bizarro, faltavam-lhe informações.
— Escute, Manuela. As coisas não são tão fáceis assim. Por mais que sejamos algo que se aproxima de deuses, Isadora e eu infelizmente não sabemos qual é a localização atual de Sara, nem mesmo qual de vocês cinco é o indivíduo que faltou ser visto por ela. Só que as explicações maiores ainda virão, até mesmo para nós dois. O diretor está chegando.
Todos se entreolharam, inquietos. O tal diretor... Se Jóhann e Isadora eram quase deuses, o que poderia ser dito sobre esse diretor? Quer dizer: de onde haviam saído essas criaturas sobre-humanas que, repentinamente, vinham com histórias sobre acontecimentos nada comuns, como se a realidade fosse cheia dessas coisas totalmente anormais? Pois, se para quase cem por cento das pessoas no mundo a vida é uma chatice, o que faria Manuela, Dante, Marina, Cecília e Luiz serem seres tão importantes ao ponto de que essas coisas incríveis viessem a acontecer justamente com eles? Essas coisas simplesmente não ocorrem na vida real. De fato, não.
Jóhann se levantou e foi à cozinha. Isadora foi fumar na janela. Os cinco jovens estavam inicialmente quietos, mas Luiz tentou começar uma conversa:
— Ei... O que vocês acham de tudo isso? Nessas horas a gente fica tão surpreendido que nem dá pra esboçar uma reação direito. Pelo menos pra mim é assim.
— É evidentemente estranho — comentou Marina —, mas já que estamos nessa situação, não há como continuar sendo incrédulo quanto à isso, a não ser que você queira acreditar que está sofrendo de esquizofrenia.
Dante riu:
— Sim, e seria muito improvável que nós cinco estivéssemos sofrendo disso ao mesmo tempo. O jeito é aceitar a realidade absurda que surge e seguir em frente. Se bem que, creio eu, com o tempo, qualquer coisa no mundo acaba ficando monótona... Por isso que o ser humano tenta variar tanto a sua rotina.
— Realmente... — falou Cecília, ficando de pé e sentando-se na poltrona antes ocupada por Jóhann — Não dá pra sair correndo de medo. Mesmo assim, tudo é possível, então a possibilidade deles serem charlatães é totalmente concebível, não?
Manuela, para a surpresa de todos, começou a chorar com um tom alto de angústia.
— Eu... Eu sei que a culpa é minha! Só pode ser! Eu não me lembro de ter visto nenhuma garota como essa tal Sara no dia do aniversário de Marina! A criança que falta só pode ser eu!
Todos foram na direção dela para consolá-la.
— Mas, Manu... — disse Cecília, em tom brando — Nem eu me lembro. Pode ser qualquer um de nós, ora. Sara estava olhando para muitas crianças ao mesmo tempo. A única que Jóhann disse que certamente a viu foi Marina, e ninguém mais. Nada é certo ainda, não se culpe antes da hora.
A garota ruiva levantou o rosto cheio de lágrimas e disse, em meio a soluços:
— Mesmo assim... Ugh!... Eu sei que sou eu... Eu posso sentir! — e desabou em lágrimas pesadas.


Do lado de fora começava a chover. O ambiente daquela casa externamente branca se transmutava em algo cada vez mais enlevante. O cheiro de vapores desconhecidos invadiam os sentidos dos cinco jovens. Uma música começava a tocar da cozinha: era Canon em Ré Maior, de Johann Pachelbel, um dos compositores favoritos de Jóhann, tanto que ambos possuíam até o mesmo nome. Já se passavam das cinco horas da tarde. O dia estava ficando cada vez mais cinzento.
Na sala, Dante resolveu tentar dialogar com Manuela, mesmo depois de ambos terem "cortado relações" no episódio do encontro inesperado no ônibus.
— Você imaginava que, mesmo depois de termos decidido dar um tempo, íamos estar aqui, um ao lado do outro, dentro de toda essa maluquice?
A garota, pensativa, falou, enquanto apertava as mãos sobre os joelhos:
— Eu não consigo entender, Dante... Tem momentos em que eu sinto que errei ao ter te falado tudo aquilo, e tem momentos em que eu me sinto bem por me sentir livre de você. É tudo muito confuso, eu sou uma pessoa confusa, você sabe. Uuufff! Viver não é fácil, essa é a verdade.
— Entendo. Mas não pense que isso acontece só com você. Todo mundo tem seus momentos de erros e acertos, de certezas e incertezas, de achar que foi compreendido e de achar que não foi. O mundo se resume à isso. Não, não, acho que não, o mundo é mais que isso... Mas a verdade mesmo é que não passamos de seres humanos. Agora, aqueles dois, Isadora e Jóhann, bom, eu francamente fico sem palavras diante de coisas além da minha compreensão.
— Sei lá... Eu ainda estou esperando pelo momento em que eles irão parar e dizer que tudo isso não passa de uma grande brincadeira de mal gosto...
Os dois olharam-se, rindo.
Instantes depois, Jóhann e Isadora voltavam à sala. A chuva continuava cada vez mais forte do lado de fora.
— Ele já está aqui. — sussurrou Jóhann.
A campainha tocou em seguida. Isadora saiu para abrir o portão. Lá fora, Leon — o velho esquisito, com longos cabelos grisalhos e a espiral na testa — encontrava-se cercado por quatro homens inteiramente vestidos de branco, talvez fossem guarda-costas ou algo do tipo. Leon e os quatro homens foram conduzidos por Isadora para dentro da residência.
Quando Dante viu o homem da espiral na testa, assustou-se: então, de fato, tudo estava relacionado. Leon, homem que havia aparecido em seus sonhos era realmente o tal "diretor".
— Boa tarde à todos. Meu nome é Leon. Sou o diretor da agência que recruta indivíduos como Isadora e Jóhann, que são atualmente os únicos disponíveis para esta missão. Foi difícil chegar aqui, Ivan não sabia de fato qual era o caminho. Na verdade, já podíamos ter advindo aqui muito antes, mas eu tenho minhas tendências de querer agir como um ser humano normal. Creio que Jóhann já explicou-lhes tudo. A informação adicional que eu trago, no entanto, é vaga, mas mesmo assim nos ajudará relevantemente. Aparentemente, Sara se encontra em uma região na Europa entre a Bélgica e a Holanda. De acordo com a fonte, ela está vivendo — dormindo — numa mansão, onde mora com uma velha senhora que toma conta dela com muito carinho. É estranho, pois, como é possível que saibamos como é o lugar e quem são as pessoas que vivem nele sem sabermos exatamente a localização? É que, como eu poderia dizer, a minha fonte é um tanto quanto desconfiada e vive mudando de opinião e temperamento. Mas, isso não tem importância. A determinação fará com que encontremos quaisquer coisas que queiramos. É bom partirmos o quanto antes. A cada minuto que se passa, Sara corre o risco de entrar em colapso onírico e isto acarretará em graves problemas futuros para ela. É triste, mas eu me culpo diariamente por não ter me concentrado em ajudá-la antes, mas isto seria impossível, o momento de vocês se unirem é este, agora, e nenhum outro. Vamos, meus jovens. Levantem-se. Está na hora.
Surpresos, todos se levantaram — a coisa ficava cada vez mais estranha e incompreensível. Leon, seus homens e Isadora saíram, seguidos pelos cinco jovens que andavam agrupados sob a chuva; Jóhann foi o último a sair, fechando a porta atrás de si. Olhando para os jovens ao mesmo tempo em que esboçava um sutil sorriso no rosto, Leon apontou com a mão para os veículos estacionados do lado de fora do portão: além do Fiat Uno da mãe de Cecília, podia-se ver uma Van em estado de conservação questionável e, logo à frente dela, havia uma lustrosa Ferrari Enzo prateada que parecia mais e mais atraente à cada gota de chuva que lhe atingia.
Apesar de toda a continuidade dos acontecimentos, havia restado uma pergunta gritante no ar: onde estariam os verdadeiros donos daquela casa, os amigos de Cecília? Que tipo de ocorrência teria feito com que eles tivessem eventualmente abdicado da posse da casa para concederem-na a indivíduos estranhos e desconhecidos para que esses realizassem uma reunião sobre problemas sobre-humanos? Essa questão, de repente, pareceu não importar mais nem para Cecília, nem para nenhum dos cinco jovens ali. Talvez ninguém precisasse saber. Talvez isso não fosse fazer a mínima diferença dali para frente. Fingir que nada aconteceu era mais fácil, mais coerente, mais saudável... Mas provavelmente não era a coisa certa a se fazer.