sábado, 31 de maio de 2008

Capítulo 2 - Despedida Turva

— D... Dante? Como é possível, o que você ‘tá fazendo aqui? — o garoto ficava olhando-a nos olhos, sem falar palavra alguma. Coçou ligeiramente a barba malfeita e desviou o olhar — O que você tem na cabeça, Dante? Eu pensei que depois de ontem as coisas tinham ficado bem claras.
Dante, dando um murro no banco da frente, gritou:
— Mas não dá! Não dá! Pra mim não dá! Eu sei que isso é ridículo, mas não consigo continuar assim!
— Cala a boca, cala a boca, por favor! Não agüento mais a sua teimosia! Você vai ter que entender, Dante, você vai ter que esperar!
— Mas, justo agora? Justo agora quando eu estou nessa situação? Meu pai mata minha mãe e some, a Marina foge de casa, eu fico quebrado, abandonado, semimorto, e você também me chuta assim, tão friamente?
— Esquece isso, Dante, esquece a sua família, você é um ser individual, esquece tudo isso, esquece tudo que passou...
A garota virou-se para a janela, olhou os edifícios suspirando, sorrindo. Dante, cobrindo o rosto com as mãos, tentava não sentir raiva do que Manuela havia dito.
— Não dá, já disse, não dá! — ele insistia — A família tem muita influência no indivíduo que eu sou, não tem como isso não ter impacto sobre mim.
Manuela, ainda observando os prédios, falou com uma doçura inigualável na voz:
— Dante... o que você vê nesses prédios todos, em tudo isso?
O rapaz viu um amontoado de edifícios de todos os tipos, a representação mais comum da cidade de São Paulo, e nuvens escuras começavam a surgir no céu — choveria na cidade.
— Nada. Não consigo me sentir tão fascinado por isso quanto você. São apenas prédios.
— Isso mesmo, não passam de prédios. Eu me sinto fascinada por eles e nem sei por quê. É uma fascinação muito forte Dante, e eu queria que você compartilhasse dela comigo, mas as coisas são como são, não como queremos que elas sejam. Por mais que o que eu esteja fazendo seja um erro, eu preciso achar a pessoa que compartilhe dessa fascinação comigo.
— E é por essa idiotice que você vai destruir uma relação de anos? Não consigo entender você, Manuela, simplesmente não consigo. Sua cabeça parece girar num sentido contrário das pessoas normais.
Manuela ainda observava os prédios, seus olhos brilhavam, uma explosão de pensamentos, emoções e idéias reviravam sua mente.
— Não é só por isso. Eu preciso ficar um tempo da minha vida sozinha, livre. Você é especial pra mim, e muito, mas nós precisamos seguir distantes um do outro agora, pra depois retornarmos mais firmes, melhores um para o outro. É necessidade de todo casal, parece besteira, mas vai nos fazer bem.
Eis que, colocando as mãos nas bochechas dele, Manuela o beijou lentamente, um beijo objetivo mas lento, que o remeteu aos momentos mais importantes vividos com ela: o dia em que se encontraram pela primeira vez, na festa de aniversário de Marina; o dia em que deram o primeiro beijo; o dia em que viajaram juntos com uma turma do colégio à praia de Santos; o dia em que dormiram juntos no metrô, sem motivo; o dia em voltavam de um encontro num restaurante da Av. Paulista; o dia em que tiveram sua primeira relação sexual. E então os lábios se separaram, e o mundo caiu pesadamente sobre os dois. A garota se levantou, deu sinal apertando o botão laranja e disse:
— Vou descer no próximo.
Ele só a olhava, e os olhares eram a única coisa de que precisavam. Dante a entendia agora. Acenou com a cabeça, a porta do ônibus abriu e Manuela foi-se, misturando-se com a multidão lá fora.
Sozinho, no ônibus, Dante suspirou:
— Adeus.
Mas ele dificilmente imaginaria que, sentado no último banco do ônibus, ouvindo tudo, estava seu pai, assassino da própria esposa, o Sr. Alves, como o chamavam. Ele se levantou, foi até o banco onde o filho estava sentado e colocou a mão direita no ombro dele, apertando-o com força.
— Vamos, Dante. Precisamos conversar.

sábado, 24 de maio de 2008

Capítulo 1 - Apenas Alguns Seres Humanos


Cinco horas da tarde, quarta-feira. Deitada na grama, debaixo da sombra de uma árvore, fumando seu cigarrinho diário, estava Manuela. Cansada, confusa, fitava com seus graciosos olhos azuis (que olhos!) algum ponto incerto no meio dos galhos e folhas. A fumaça do cigarro meio que embaçava-lhe a vista, mas ela planejava parar com esse vício, mesmo que um cigarro por dia fosse pouco se comparado com muitos outros fumantes obsessivos espalhados pelo planeta. Para ela, tratava-se apenas de mais um vício passageiro na sua vida, no meio de tantos outros que já tivera ou viria a ter — as pessoas são assim, cheias disso, e no meio estão suas crenças, seus fascínios, paixões, chegando por fim na razão e na criatividade. Manuela era assim, mas seguia caminhos mais mesclados, talvez até "descolados"; era uma típica garota com visual "cool" e, como se não bastasse, espetacularmente bonita: seus longos cabelos ruivos, de um vermelho bem vivo, vermelho sangue, eram sua maior peculiaridade quando somados aos olhos azuis — mas, não só isso, pois tinha um rosto lindo, "bem desenhado", como dizem, e era dona de um corpo modelado com perfeição. Porém, não era só no seu lado exterior que a garota surpreendia, tinha um grande potencial de intelecto, talvez alcançado de uma maneira um tanto quanto capenga, mas que era uma mente forte, elevada, isso era.
— Que saco...! — exclamou, sozinha, tirando o cigarro da boca e jogando-o ainda aceso perto dos pés para depois apagá-lo, pisoteando-o com a bota plataforma que usava. — O que eu ganho fumando isso? O que eu perco fumando essa merda? — perguntava-se.
Ficou de pé. Suspirou. Seu estômago doía de fome, não comia desde as oito horas da manhã. Sem dinheiro, não tinha como comprar nada nas barraquinhas espalhadas pelo Parque do Ibirapuera, que era onde estava, um dos seus lugares favoritos para tranqüilizar a mente, aliviar o estresse. Mas tudo, pouco a pouco, ia se tornando cada vez mais angustiante: sua vida parecia desmoronar — mas isso tinha acabado naquele dia, naquela quarta-feira. O telefone celular, no bolso de trás da sua calça jeans, começou a tocar (o toque era uma música do Sigur Rós, uma banda islandesa razoavelmente famosa de pós-rock formada nos anos 90), Manuela o retirou de lá e olhou o visor: era sua amiga Cecília, com quem dividia o apartamento em que morava. Atendeu.
— Fala.
— Tudo bem, Manu? ‘Cê tá demorando pra chegar, o que acontece?
— Nada não, Cecília. ‘Tava só esfriando a cabeça, tô de saco cheio...
— Manuela... Como assim? Saco cheio do quê? De mim?
— Ah! De você e de todo mundo! Quero sumir, quero pegar uma estrada, viajar por aí, sem rumo. Tô cansada de toda essa grande merda que o mundo é! Cansada de verdade!
Cecília, do outro lado da linha, não sabia se ficava surpreendida ou se achava graça da situação. "Ela está brincando, só pode", pensou.
— Hahaha! Para de bancar a depressiva, para de bancar a vítima, Manu. Não tem como você fugir do mundo. É absolutamente impossível, garota. E existe muita coisa boa nele pra você ir desistindo de tudo assim...
— É exatamente isso o que quero fazer, poxa! Quero aproveitar o mundo, eu quero viver, caramba! Quero montar uma banda, quero fazer mais sexo, quero viajar pelo mundo! Será que você, que me conhece há tanto tempo, consegue entender isso?
— Eu te entendo, Manu.
— Entende mesmo?
— Sim, mas, calma. Eu já senti a mesma coisa que você e te entendo tão bem que quero propor um acordo.
No Parque, Manuela caminhava velozmente para a saída. De repente, lembrou-se das palavras de Dante, ditas à ela na noite anterior: "Você não vale nada, Manuela. Nada. Me excluiu da sua vida quando eu mais precisei de você. Não dá, Manuela, não dá pra entender você!", e o jovem Dante, à beira das lágrimas, saiu correndo no meio do Terminal Santo Amaro. Manuela voltou à Cecília:
— Eu sei o que você quer propor, Cecília, e não quero saber, não aceito esse acordo idiota. Não vou fazer as pazes com o Dante, não depois do que ele fez.
— Manu... esquece o Dante. Não é nada relacionado à ele. Venha logo aqui para o apartamento e a gente conversa melhor. Aproveita e tira uma soneca no busão. Você precisa, você merece.
— Tá... Tô exausta. Desculpa. Até daqui há pouco... Ah! Eu já ia me esquecendo: eu me demiti da floricultura hoje!
E desligou o celular. Manuela, pensativa, parou de andar por um instante bem na entrada do parque e observou ao redor: os ônibus, os carros, os prédios, as pessoas, a poluição, o céu, o asfalto, as árvores que ficavam pra trás, tudo que o seu campo de visão podia alcançar... o que era tudo aquilo? "Preciso usar mais os outros sentidos", pensou a garota ruiva. "A visão é cansativa às vezes".
Sentou-se num banco no ponto de ônibus e ficou a esperar a chegada do meio de transporte. Um velho esquisito (não era um mendigo!), não chegava a ser mal vestido, mas tampouco se vestia bem, estava sentado próximo à Manuela, e fazia gestos estranhos com as mãos, como se estivesse acariciando algum animal ou pessoa, ficando sempre a olhar para todos os lados com pressa, parecendo estar temendo a chegada de alguém. Manuela observou-o com dúvida, mas logo desviou o olhar, voltando a viajar em seus pensamentos. O velho então se levantou do banco cambaleando um pouco e foi se aproximando dela lentamente, até que, ao ficar frente a frente com ela, começou a balançar as mãos em volta dela sem tocá-la, murmurando umas baboseiras:
— Ô... Gui... Ê... Ô... Ih... Ô...! — aí abaixou os braços e voltou para o lugar onde estava sentado. Manuela, boquiaberta, não tinha entendido o misterioso gesto (se é que fazia algum sentido) e provavelmente não ia entender tão cedo.

O ônibus chegou, Manuela deu sinal, subiu e se sentou num banco ao lado da janela, encostando a cabeça no vidro e adormecendo. E, apesar da tranqüilidade, não teve nenhum sonho significativo o suficiente para que se lembrasse posteriormente. No entanto, uma pessoa, uma significativa pessoa, adentrava no ônibus quando o mesmo parou no ponto seguinte, o indivíduo subiu no veículo, passou pela catraca e viu Manuela quase que de imediato e, meio inconscientemente, sentou-se a lado da garota. Esse indivíduo era Dante.
Dante era um ser humano distinto. Apesar da aparência bastante comum, por dentro guardava uma personalidade instável, turbulenta e, por que não dizer, esquisita. Era um rapaz bonito, culto, cheio de vida, educado, mas ao mesmo tempo não era muito sociável, nem expressivo, e raramente sabia divertir as pessoas (a não ser quando conseguia diverti-las involuntariamente). Mas talvez fosse possível dizer que naquele garoto existia alguma coisa especial, alguma coisa que, no meio de tanta contradição, brilhava ardentemente. Seguindo esta linha, é provável que Manuela tenha visto nele essa coisa que brilhava e, por esta razão, iniciaram uma relação amorosa. O ano era 1999, Manuela e Dante tinham onze e doze anos, respectivamente. A irmã mais nova de Dante, Marina, ia fazer nove anos de idade e sua mãe ia fazer uma daquelas típicas festanças de filmes americanos no seu vasto quintal gramado. As mães de Manuela e Dante não chegavam a ser amigas, mas eram colegas de trabalho e, já que a festa seria grande, quando mais gente fosse convidada, melhor. A pequena Manuela não tinha a mínima vontade de ir, pois o pai havia prometido que a levaria no cinema, e do jeito que as coisas andavam (a mãe era a voz ativa da casa, se é que vocês me entendem!), essa promessa seria quebrada. Dito e feito, estavam lá os três na festa de nove anos de Marina, um mundaréu de adultos e crianças comiam, corriam, riam, brincavam, era tudo uma aparente alegria sem fim, até o ainda pequeno e já anti-social Dante se divertia. Sua irmã Marina comia doces sem parar. Manuela, no entanto, estava isolada, num canto, sentada numa cadeira de plástico, ainda emburrada por não ter ido ao cinema. A mãe da aniversariante logo viu a menina solitária e pediu que Dante fosse chamá-la para comer alguma coisa. Deve-se dizer que foi exatamente nesse instante que os dois se conheceram e definitivamente nunca mais se esqueceriam um do outro.
— Quer comer um brigadeiro?
— Tá...
E, mastigando um delicioso beijinho, Dante, meio exaltado e meio impulsivo, disse:
— Você é linda.
Surpresa, a menina respondeu:
— Obrigado.
No ônibus, Dante apreciava em silêncio a beleza daquela Manuela adormecida, ainda a amava mais do que qualquer outra coisa e, enquanto essa certeza o dominava, o ônibus deu um solavanco forte e a garota acordou. Ainda sonolenta, viu o asfalto pela janela, e depois olhou para o lado, demorando um certo tempo para reconhecer quem estava ali.
— D... Dante!?