sábado, 21 de junho de 2008

Capítulo 5 - Mundo Inconstante

— Não é mais nada, nunca foi. Talvez até seja um dia, mas é improvável. Esse rapaz é deplorável, é triste dizer isso, mas é a mais pura verdade! — uma senhora alta, de cabelos coloridos, com um estilo excêntrico e contemporâneo de se vestir, com cerca de cinquenta anos de idade, conversava quase que escandalosamente com um senhor franzino e misterioso, com sotaque estrangeiro (era islandês) que deveria ter no máximo quarenta anos, numa mesa de um restaurante da Avenida Paulista.
— Eu acho que discordo. O pobre jovem não sabe bem que caminho seguir na vida, apesar de já estar com vinte anos, mas assim mesmo existe um potencial nele, um potencial adormecido.
A mulher passou a mão pelos cabelos, tomou um gole do Whisky que estava em cima da mesa e retrucou:
— Besteira. Quando alguém é assim, não tem jeito. Esse tal potencial vai ficar adormecido pro resto da vida, a não ser que algo muito impactante surja de repente, e o desperte.
— Mais uma vez, discordo. Ele teve algumas conquistas na vida. Não sei se alguma coisa o despertaria mais do que a recente morte da mãe, então descartaria essa hipótese. É possível que a ausência de Manuela em sua vida possua um peso que, com o decorrer do tempo, venha a modificá-lo mais intensamente. Não sei. Mesmo assim acho que devíamos apostar nele.
— Jóhann, você está se precipitando. Mal analisou a irmã dele, esta sim parece ter algumas peculiaridades valorosas e interessantes. Já olhou nos olhos daquela jovem? Jamais vi olhos como aqueles, só podem ser extra-terrenos! Sem falar da personalidade, que é indiscutivelmente brilhante. Ela é um ser muito único para que deixemos passar batido.
Dessa vez foi Jóhann quem bebeu um pouco do Whisky e ficou a bater de leve na mesa com os dedos.
— Sim, eu pensei nela também, Isadora. Aquela garota, Marina, possui um inteligência que, se não equivale à nossa, no mínimo, chega perto. O problema, no entanto, é o vasto potencial interior dela — pode fugir totalmente do controle, e, nesse caso, é melhor nem estarmos perto.
O garçom veio e Jóhann pagou a conta. Isadora e ele se levantaram (com certa impulsividade) e caminharam para fora do estabelecimento; a Avenida Paulista, à noite, parecia pacífica e sossegada. Os dois entraram num Celta preto que estava estacionado perto dali — Jóhann pôs-se a dirigir o veículo.
Isadora, colocando o cinto, comentou:
— Acho que seria bom darmos uma olhada no nosso outro garoto antes.
— Quem, o Dante?
— Não, o Luiz.
— Quê? Eu imaginava que, pelo menos com relação à ele, nossas tentativas tinham se esgotado.
— Provavelmente acabaram... mas os problemas dele não são só psíquicos ou existenciais. O coitado passa fome.
— Isadora... a culpa não é nossa.
— Nem dele. É só deixarmos algo pro infeliz comer e pronto. Eu já passei fome, e não é nem um pouco bom.
Olhando para o lado, na rua quase vazia, enquanto o farol estava vermelho, Jóhann só viu uma jovem de bicicleta — os cabelos muito cacheados só o remeteram a uma pessoa.
— Veja, Isadora.
Isadora fitou-a, eufórica. Marina, por acaso, virou a cabeça e viu os dois no carro a observarem-na.
— Vá Jóhann, pegue-a, rápido! Saia do carro e pegue-a!
O islandês pulou para fora do Celta, sendo praticamente empurrado por Isadora. Marina mal teve tempo de pensar em colocar o pé no pedal: já estava imóvel entre os braços magros de Jóhann, sendo levada para o carro preto e vendo sua companheira quase íntima, a bicicleta, ficar cada vez mais longe de si. Jóhann jogou a jovem no banco de trás e voltou para o volante. A garota, já preparada para gritar e tentar fugir, ficou inteiramente paralisada ao ver a figura de Isadora a sorrir bondosamente para ela.
— Olá, Marina. Talvez você não se lembre, mas essa não é a primeira vez que nos vemos.
— Eu... Eu... Não sei. — Marina gaguejava.
— É compreensível. Agora, escute: no momento, você vai apenas aguardar. Eu e meu amigo temos uma tarefa a cumprir, coisa rápida. Depois disso, vamos te mostrar... como eu poderia te dizer — ah sim! — um novo mundo! — e, com as mãos abertas, desenhou um semi-círculo no ar.

sábado, 14 de junho de 2008

Capítulo 4 - Chuva, Grama e Sangue

A praça estava quase vazia, possivelmente pela chuva que começava a cair por ali, Dante foi convidado por seu pai para sentar em um dos bancos, que se sentou também em seguida ao lado do filho. Dante, em sua atual situação, não sabia se sentia medo ou raiva, se gritava acusando o pai ou se corria para fugir do assassino. No fim das contas ficou ali, esperando para ouvir qualquer coisa que o pai tivesse para dizer. A mistura do vento frio e da garoa cortante embrulhava o estômago do garoto. Respirou fundo e direcionou sua atenção ao pai.
— Filho... Antes de tudo, preciso te dizer: a culpa não foi minha — aquela frase doeu em Dante como se tivesse levado um murro no pâncreas — Sua mãe não sabia o que estava fazendo e, no meio daquela reviravolta, a arma acabou disparando. Você viu, você estava lá.
Virando a cabeça e olhando o pai com fúria, Dante retrucou:
— Sim, eu vi, eu estava lá, eu vi você matando a minha mãe, foi isso que eu vi! Não sei como você ainda consegue negar isso, não é possível.
Ambos ficaram em silêncio. O Sr. Alves olhava o horizonte, pensativo, talvez chegando a perceber que não dava mais para enganar o filho, não naquela altura do campeonato. Era um homem alto, magro, e com uma constante expressão de cansaço no rosto, o que lhe dava uma aparência mais velha do que a sua idade real, trinta e nove anos. A perda de seu emprego resultou numa intensa briga de família que durou muitos meses, atingindo o ápice no dia da morte da esposa e a sua fuga. A partir dali Dante e Marina passaram a morar com os tios, mas não se passou uma semana e a irmã mais nova de Dante havia fugido, levando apenas algumas roupas e sua inseparável bicicleta.
— Dante, meu filho, você já é quase adulto, você entende o mundo, entende as coisas. Eu quero apenas fazer um acordo contigo. A nossa família acabou, não há mais o que tentar recuperar. Só preciso que você colabore, pela última vez.
— Colaborar? Colaborar?!? Pai, você está enlouquecendo? Você acha que eu vou colaborar em alguma coisa para ajudar você depois de matar a minha mãe, seu desgraçado?
— Meu rapaz, eu já estou na merda. Acabar com você não seria agradável para mim, mas eu não hesitaria se fosse necessário; quero evitar ter que sujar as mãos de novo, se você me entende. Por isso é que peço sua colaboração, nada mais. É só ficar quieto, de bico fechado, e todo mundo sai ganhando. Essa é a proposta e, como você vê, não tem muita opção.
O estômago de Dante embrulhou-se mais ainda. Tinha que pensar num jeito, numa maneira de fazer justiça, por mais que as coisas pudessem acabar meio sangrentas. O garoto rodeou o ambiente com os olhos, procurando algum objeto que pude-se ajudá-lo a abater o pai de alguma forma, mas não havia nada.
— Pai... Você é um desgraçado. O maior que já conheci — e, num ímpeto de fúria, avançou sobre o pai, derrubando na grama do parque, dando-lhe repetitivos socos no rosto e em qualquer lugar que conseguia, mas o pai era mais forte, com apenas um braço, desvencilhou-se do filho, se levantou, tirou o revólver de dentro do casaco e mirou Dante.
— Não precisava fazer isso Dante, não precisava me deixar com mais raiva.
Dante, sem temer o revólver que o pai apontava-lhe, retrucou:
— Raiva? Quem tem que ter raiva sou eu, pai, eu!
Num rápido movimento de pernas, Dante deu uma rasteira no pai, fazendo com que o ele caísse, perdendo a arma, que ficou à uns dois metros de distância dos dois. Dante ficou de pé, apanhou a arma e dimensionou-a, mesmo mal sabendo manuseá-la, diretamente para o pai. Engatilhou. Seu dedo indicador tremia no gatilho. O Sr. Alves, levantando a mão, inventou, de repente, uma mentira que, como ele imaginava, talvez imobilizaria Dante.
— Pare, filho, pare! Se fizer isso... se fizer isso nunca mais vai ver sua irmã de novo! Nunca!
— O quê?
— É o que você ouviu: só eu sei onde sua irmã está. Se você atirar agora nunca mais vai vê-la. E não adianta você me levar para uma delegacia agora, pois, por mais que você me acuse de qualquer coisa, eu negarei tudo, não existem provas de nada. Ninguém acreditará em você, seu miserável. E, além do que...
Dante puxou o gatilho. Ouviu-se um estrondoso ruído. O Sr. Alves parou de falar. Uma trovoada irrompeu no céu. O sangue, misturando-se com a grama e a chuva, parecia brilhar num tom mais vermelho do que o normal, um vermelho muito vivo, e continuou escorrendo, abrindo caminho entre as folhas verdes. Um caminho vermelho.
— Acabou, pai. Acabou.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Capítulo 3 - Marina

Quando Manuela chegou ao apartamento na Rua Vergueiro, a amiga Cecília a esperava na porta, com uma expressão aflita no rosto.
— Entra
Manuela entrou. O apartamento razoavelmente grande estava um tanto quanto bagunçado, com algumas roupas espalhadas pelos cantos, mas nada muito aterrador. Cecília fechou a porta e foi se sentar ao lado de Manuela no sofá.
— Manu...
— Cecília, eu encontrei o Dante no ônibus. Acho que as coisas estão mais amenas. Ele entendeu agora.
— Que bom. Bom para vocês. Espero que esteja fazendo a coisa certa.
— Acho que estou sim.
As duas se olharam, sorrindo. Cecília, com seus longos cabelos negros e olhos azul-esverdeados era quase tão bonita quanto Manuela. Eram amigas desde quando entraram na faculdade — o curso era de Publicidade, mas ambas haviam o largado faziam três meses. De lá, arrumaram um emprego e resolveram rachar o aluguel do apartamento.
— Isso também me alivia, sabia? — comentou Cecília — É muito bom ver você com essa cara renovada.
— A sensação de liberdade é ótima agora. Não que eu não gostasse do Dante do meu lado, mas, você sabe, tem horas em que a gente não suporta mais. Mas, deixa pra lá. O caso tá resolvido. Agora me fala: qual era a proposta da qual você falou no celular, hum? Pode ir falando.
Cecília riu.
— É coisa simples, Manuela, mas não pra agora. Tem que ser nas férias, e elas estão chegando, só falta um mês. Você pode ter se demitido da floricultura, mas eu ainda estou penando lá na firma. As papeladas que eu tenho que arrumar todo dia são uma tortura.
— Tá, tudo bem. Mas você ainda não disse qual é a proposta.
— É o seguinte: eu conheço um pessoal meio hippie lá do interior, de uma terrinha perto de Itu... e, bom, eu pensei se nós não poderíamos ir para lá nas férias, ficar uns dias, pra esquecer toda grandeza insuportável dessa cidade, para respirar outros ares, fazer coisas diferentes. E aí, topa?
— Primeira coisa: não fale mal da grandeza de São Paulo. Eu tenho uma relação com essa cidade, eu a amo demais. Segunda coisa: não gosto muito desses interiorezinhos aí, eu não tenho nada contra esses seus amigos, mas não duvido nada de que irá rolar muita droga nesse lugar, você sabe o que eu quero dizer, e terceira coisa: o que eu queria era viajar pra conhecer outras cidades grandes e tal. Mas, sei lá, podemos ir mesmo assim, se o pessoal for realmente interessante, pode ser uma experiência boa.
Não compreendendo totalmente os motivos da amiga, Cecília exclamou:
— Que saco, pô! Você me fala que queria viajar sem rumo por aí, fazer mais coisas e o caramba, mas quando as oportunidades aparecem, você as trata com todo esse desprezo?
— Não trata-se de desprezo, Cecília, é sinceridade. Só isso, você sabe. Mas nós vamos ir sim, não esquenta. Se vai ser bom ou não, que se dane, vamos ver no que vai dar.
Manuela se levantou e foi até a janela. Uma garoa fina começava a despencar do céu. Um cansaço mental incômodo parecia querer dominar sua mente. Fechou os olhos.
— Manu... — chamou Cecília — É quase impossível não ficar melancólico nesses dias obscuros e gélidos, mas, acredite, as coisas vão melhorar, eu tenho certeza.
Rindo num tom meio zombeteiro, Manuela disse:
— Como pode ter certeza? Como vai me garantir que a minha vida não vai continuar sendo essa merda pra sempre?
— Descansa, Manuela. Vai esfriar a cabeça um pouco.
— Vou mesmo — mas, enquanto isso, lá fora, Manuela acabava de ver repentinamente, uma pessoa conhecida — Cecília, vem cá, olha ali! —
Manuela apontou para uma garota agachada no meio da calçada amarrando o tênis, com uma bicicleta do lado. Os cabelos muito cacheados, cortados na altura dos ombros, davam-lhe um ar alternativo, mas que não deixava de ser comum, não deixava de ser uma pessoa com um semblante cheio de personalidade (ou não!), mas era singular, singular na aparência, na beleza, em tudo, mas talvez tudo isso fosse apenas suposição, talvez fosse uma garota antipática, infantil, tola, mas quem não deixa de ser tolo, ou antipático, ou infantil em alguns momentos? Era, afinal, um ser humano, como qualquer outro, como Manuela, Dante ou Cecília — seu nome: Marina.
— É a Marina, não é? E agora? Vamos atrás dela? — perguntou Cecília.
— Bom, não sei, ela fugiu de casa por conta própria, não acho que devemos interferir na decisão dela. Se bem que vai ser meio difícil ver ela de novo numa cidade como essa... Vamos, vamos lá, temos que pelo menos falar com ela.
Afobadamente, as duas correram velozmente para fora do apartamento, desceram dois andares de elevador (o apartamento delas ficava no segundo andar) e, virando a esquina, chegaram à calçada onde Marina estava. Ao verem a garota montar na bicicleta, saíram correndo, gritando o nome dela, num desespero cômico e estranho.
— Marina! Marinaaaa!
E, numa calma extraordinária, Marina, dando uma rápida olhada para trás, começou a pedalar, ainda ouvindo as vozes das duas que gritavam estupidamente.
— Marina! Esperaaaa!
Continuaram a correr atrás dela, Marina virou outra esquina, e depois, acelerando a pedalada, foi sumindo de vista.
— É, perdemos ela. — falou Cecília, desapontada.
— Sim, mas... o que é isso? — Manuela se abaixou para pegar um pedaço de papel caído no chão. Parecia ser a metade de uma foto rasgada no meio, nela via-se o rosto de Marina, um rosto absurdamente perfeito, os pungentes olhos castanho-claros, um sutil sorriso aparecia nos lábios, a menina de dezessete anos exalava grandeza, alvura, paciência, e, acima de tudo, exalava o poder de ser independente. — Como ela é bonita... Ah, tem algo escrito atrás: "Para vocês duas: se quiserem mesmo me encontrar para conversar, saber as circunstâncias dos meus atos, ou qualquer coisa, me encontrem daqui há seis dias no Terminal Bandeira, às 17:00. Eu sou uma coisa que pensa."
Uma brisa leve e nostálgica acompanhava desordenadamente os pingos da garoa que caía na Rua Vergueiro naquele momento.