quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Capítulo 13 - Uma Noite Antagônica

O tempo passava cada vez mais rápido desde o dia em que os cinco jovens haviam ouvido as explicações saírem das bocas de Jóhann e Leon. Estavam todos de volta à cidade de São Paulo. Leon havia dado-lhes o prazo de uma semana para que se preparassem antes da viagem para Amsterdã. No penúltimo dia de preparações, os cinco, por pedido de Marina, combinaram de se encontrar às 21h00min em frente ao MASP — o Museu de Arte de São Paulo. A noite estava razoavelmente quente, mas parecia poder esfriar a qualquer momento. A própria Marina foi a primeira a chegar, quinze minutos antes do horário marcado. Vestia um sobretudo pardo de lã pura sobre a camiseta branca e calça jeans azul-escura que usava. A sua "atmosfera" já não era mais a mesma de antes: um certo quê de amadurecimento penetrante tomava conta de sua personalidade. Mas ela ainda era, no fundo, a mesma garota que poderia ser infantil ou incoerente a qualquer momento, a mesma garota com dezessete anos chamada Marina; aquela lá, a dos cabelos muito cacheados.
Aos poucos, eles foram chegando: Luiz foi o primeiro a acompanhar Marina na espera pelos outros. Ele veio bem vestido, apesar de sua questionável situação financeira. O rapagão de dezoito anos apresentava-se todo de preto, exceto pela jaqueta vermelha aparentemente velha que vinha trazendo nas mãos.
Cumprimentou Marina com um beijo no rosto e disse:
— Será que é um bom momento pra dizer que você está congestionavelmente linda?
A garota, corando e dando um sorrisinho bobo, agradeceu, mas desviou o assunto em seguida.
— Não sei se é um bom momento ou não, mas ultimamente eu tenho andado muito pensativa. Leon e aquela espiral bizarra dele não me saem da cabeça. Jóhann e Isadora parecem esconder algo. E eu ainda tenho minhas dúvidas a respeito daquela garota Sara, mesmo que eu me lembre vagamente dela. Eu juro que, há um mês, viajar para Amsterdã era a última coisa que eu imaginava que ia fazer. Se bem que eu tenho a intuição de que alguma coisa inesperada ainda vai acontecer antes dessa viagem.
— Marina... Como você consegue ser tão fascinante?
Ela deu outro sorrisinho bobo, mas dessa vez não corou.
— Tá bom, tá bom, você, pelo jeito, não quer falar sobre o caso Sara — disse ela, rindo —, mas a reunião que eu marquei hoje é pra falar justamente sobre isso; ou melhor, eu vou apenas mostrar a vocês que eu sei coisas à respeito de assuntos muito importantes que demonstram as verdadeiras facetas desse tabuleiro obscuro onde nós somos as peças. Muita coisa vai acontecer em muito pouco tempo, e é melhor todos estarem preparados. Inclusive eu.
O garoto, surpreso e ao mesmo tempo confuso, imaginou que Marina estivesse fazendo algum tipo de piada — certamente, se fosse, tratava-se de uma das menos engraçadas.
— Haha... Ha...! — Luiz tentou forçar uma risada.
— O que foi? Qual é a graça?
"Então não foi uma piada!", concluiu ele, mentalmente.
Mais alguns minutos se passaram, dessa vez Cecília e Manuela chegavam ao local: ambas belamente trajadas: Cecília vinha com um vestido com listras brancas e pretas na horizontal, com um par de botas plataformas nos pés; Manuela vestia uma camiseta amarela da banda Sigur Rós, com a foto do Bebê Alien da capa do álbum Ágætis Byrjun estampado no peito, isto somado com a calça jeans preta e bem justa que usava — mas os cabelos vermelhos estavam bem ali, sempre encantando mais do que qualquer outra coisa.




— Boa noite! — disseram as duas, em uníssono.
Luiz, vendo as duas beldades se aproximarem, não pôde evitar outro comentário:
— Cara, eu estou dentro de um harém! Tomara que o Dante não chegue tão cedo!
Todos riram intensamente.
No céu azul-escuro, uma lua cheia brilhava singularmente. Luzes e faróis iam e vinham por todos os lados naquela Avenida Paulista angustiante, tanto pelo seu tamanho, quanto pelo significado dentro de toda a cidade. Todos esperavam Dante com inquietação, enquanto conversavam sobre assuntos triviais.
— Que camiseta esquisita é esta que você está usando, Manuela? — perguntou Marina, realmente sem ter o conhecimento do que se tratava aquele Bebê Alien.
— É da banda Sigur Rós — respondeu Manuela, com um cordial sorriso —, eles são islandeses, as músicas deles são muito boas. São instrumentais, com toques de guitarra e bateria, sei lá, é difícil encaixá-los em um único gênero, dizem que é pós-rock, mas o que eu sei é que é a minha banda favorita, de fato.
— Huumm... Interessante. — sussurrou Marina, vagamente.
— Está esfriando um pouco. — comentou Cecília.
— Dante... Ele está demorando. — soltou Luiz, contrariando a sua própria piada anterior.
Cerca de dez minutos silenciosos se passaram, e lá vinha o garoto Dante, numa calma e aparente autoconfiança jamais vistas antes: vestia uma calça jeans preta e uma simples camiseta branca sem estampa alguma; a barba, sempre malfeita, agora estava impecável — havia agora um brilho tão diferente no rapaz que Manuela, inevitavelmente, sentiu seus sentimentos revirarem-se dentro de si mesma.
Dante se aproximou e, acenando para todos, disse, com ternura:
— Olá, pessoal.
— Olá! — responderam todos.
Organizados um ao lado do outro, formando um círculo, sentados em um canto, sob o corpo principal do MASP, os cinco jovens estavam todos ali para decidirem, afinal, as suas vidas — levar ou não à sério os acontecimentos do dia 29 de Agosto de 1990 era algo extremamente definitivo e importante para o futuro que os aguardava. Marina, abrindo o "debate", falou, imponentemente:
— Senhoras e senhores...! — falou, rindo infantilmente — Essa espécie de reunião que eu marquei com vocês, na verdade, quer dizer mais coisas do que vocês imaginam. Primeiro vou deixar que falem — sim, muita gente já falou durante essa história, mas essas são as considerações finais —, e aí eu falarei por último, pois tenho uma informação extra dentro desse "jogo" no qual somos, forçadamente, as peças, de certo modo, manipuláveis!
E fez aquele sinal de aspas no ar com os dedos indicador e médio das duas mãos. Ninguém entendeu direito o sentido da palavra “jogo”, mas isto ia fazer mais sentido depois.
Trocas de olhares rápidos — Manuela e Dante, de súbito, sentiam calores imensos dentro de seus corações: a paixão dos dois, um pelo outro, parecia estar renascendo (apesar de nunca ter morrido completamente) naquela ocasião inoportuna. Havia todo um clima de parafernália no ar, uma parafernália de pensamentos suspeitos ou de emoções volúveis, todo mundo no meio da presença de uma desagradável falta de proximidade com relação aos outros. Isso soava estranho, mas era o que acontecia.
Na escuridão vasta e luminosa da noite, os jovens debatiam.
— Acho que devemos ter uma imensa dose de bom senso aqui — dizia Dante —, afinal, nós vimos Jóhann se tele transportar na nossa frente e ignorar esse fato é o mesmo que duvidar da própria realidade, isto é, quem nunca ouviu falar de Descartes e suas teorias sobre a impossibilidade de tudo? Tá, eu não quero entrar nesse papo, mas sejamos sinceros, se vamos duvidar do que aconteceu naquele dia, teremos que duvidar de qualquer coisa que aconteceu e vai acontecer na nossa vida. E isso, pelo menos por hora, não é ter bom senso. Não mesmo.
— Concordo — comentou Cecília —, e, apesar de isso me dar um frio na barriga bem incômodo, tenho vontade de esclarecer toda essa história da garota Sara de uma vez. Não há nada a perder, não pra mim; algo muito significativo, realmente não há.
— Sabemos que isso poderá ser arriscado — falou Manuela—, mas eu sinto que as intenções de Jóhann e Isadora, no fundo, são boas.
— Eu conheço aqueles dois a um tempo considerável — interveio Luiz —, creio que as intenções de ambos são boas, mas mesmo assim, devemos estar sempre com um pé atrás... Afinal, eles possuem poderes incompreensíveis e podem mudar de temperamento repentinamente: nessas horas, quem paga o pato somos nós.
Marina só observava, concordando (ou não!) com a cabeça a cada comentário feito. Aguardava o momento-chave para soltar a informação extra que possuía — talvez fosse um blefe; aliás, talvez ela estivesse blefando o tempo todo, desde o início; talvez ela não passasse de uma vigaristazinha querendo se aproveitar da indecisão humana para se sobressair; especulando ainda mais além, talvez ela fosse um ser sobre-humano assim como Jóhann e Isadora, com objetivos, razões e motivações duvidosas. Talvez.
A discussão continuava num ritmo quase frenético. Dante expressava suas opiniões de uma maneira raramente vista antes. Estava inspirado. De repente, quando o assuntou começou a se desvirtuar e parecer tomar um rumo mais descontraído, Marina os interrompeu, vendo ali a ocasião perfeita pela qual esperava. Olhou nos olhos de cada um, aqueles olhos castanho-claros tão especiais, tão infinitos.... Suspirou meigamente e começou a falar num tom suave, intrinsecamente vivaz e quase melancólico:
— Hum! Hum! Legal! Vocês com certeza já decidiram o futuro de vocês. Vão salvar a Sara, não é? Eu já imaginava que chegariam nesse consenso. Certo, certo. Vou olhar bem pra cada um de vocês aqui e dizer, do fundo do meu coração: vai ser uma experiência inesquecível! Mas falta um detalhe, só um. Sim, sim. A coisa toda não é só isso que parece. Toda essa historinha da busca por Sara não é mentira, mas eu acho que eu poderia chamar ela de pretexto; sim, sim, um pretexto praquele diretor Leon e sua agência misteriosa nos vigiarem bem debaixo dos narizes deles. Pois é. O que eles realmente querem não é salvar Sara. Quer dizer: não são só eles que estão atrás de Sara e atrás de nós. Existem outras agências, de fato, mas é melhor detalhá-las uma a uma em outra oportunidade. Eu faço parte integral de uma delas — mas não se preocupem, eu não tenho esses “poderes”, pelo menos acredito que não, até porque eu não preciso deles. As citadas agências, na realidade, se preocupam com um fator comum: a dominação do planeta através de ameaças bioterroristas, ao mesmo tempo em que querem usar estas ameaças para forçar as pessoas a cuidarem dos problemas ambientais mais remotos — e, não, eu não estou falando de nenhum problema específico, até porque isto seria uma horrível generalização. Tirando esse fator comum, as agências possuem vários pontos divergentes, e, comparando a minha agência com a de Leon, talvez o mais importante deles seja a questão relacionada à observação humana. É uma história muito macabra. Existe um boato sobre mutações genéticas e lavagens cerebrais rondando a agência de Leon, mas eu não posso afirmar nada. Eu só posso afirmar uma coisa, por enquanto: eu sou uma espiã dentro da agência de Leon.
Dante foi o primeiro a questioná-la, depois daquele tiroteio de palavras bizarras e concepções questionáveis:
— Marina, me responda uma coisa: algumas dessas agências têm nome, por acaso?
— Sim.
— E qual o nome da agência de Leon?
Eve. Não sei o significado, mas o nome é esse.
— Sei, sei... E o nome da sua agência?
Delphia. Eu sei que parece uma grande maluquice, mas é verdade. Por hora não dá pra explicar cada detalhe, desde a origem (e o motivo da origem) dessas agências, mas vocês ainda vão ter a chance de ouvir. O mais importante é que vocês tenham em mente o seguinte: eles podem estar nos observando agora; eles podem estar nos observando o tempo todo. Eles querem algo de nós, não sei ao certo o quê. Sara é um pretexto. Guardem isso na cabeça de vocês.
Um riso ecoava dentro de Marina. Um riso puro de quem conseguia entortar a mente dos outros. Se era um riso de mentira, ou de enganação, não havia como saber. Mas tudo havia ficado anormalmente torto. E as mentes dos jovens ali — inclusive a dela —, estavam bem tortas.

domingo, 17 de agosto de 2008

Capítulo 12 - O Conto do Crepúsculo

"Em tempos imemoriais e, talvez, não pertencentes ao contexto geral desta narrativa, vivi momentos muito valiosos. Muitos já amaram; inúmeros já citaram tal tema em incontáveis circunstâncias; mas esta não é uma história de amor, é uma história de inquietação, de olhares anônimos, de repetições dolorosas, de paciências torturantes, mas não deixa de ser uma história definida como a queda da razão diante da emoção... E, neste caso, tal queda proporcionou um indescritível poder de causar sofrimento. Afirmo-lhes isso, pois, um ser humano sofre neste instante. Palavras provavelmente não chegarão perto de toda a síntese dos acontecimentos. Eu estava apodrecendo por culpa própria, envolvido por uma armadura de energias duvidosas, mas isto não me impediu de deitar meus olhos nela, naquela garota, como se o mundo fosse maior, mais livre, mais independente, mais carismático, mais perto do fim. Olhei bem para ela: era uma doce face construída com louvor, com sutileza, com capacidade absurda de prender a atenção de um indivíduo do sexo masculino — e talvez de alguns do sexo feminino também. Primeiro, me pareceu de estatura baixa, depois vi as curvas sinuosas e gráceis do seu corpo, o que me fez, suspeitosamente, achar que não teria como me esquecer dela com alguma facilidade. Porém, eram o rosto e os cabelos os que mais me sugavam mentalmente; era possível que, em um milhão de mulheres no mundo, não se encontraria um ser cósmico e distinto como aquela moça, e como os cabelos dela, isto é, os cabelos em conjunto com aquele seu rosto soberbo; digo, só um tempo depois, na conformidade real das coisas, eu viria a perceber que ela se tornaria evidentemente inolvidável para mim.

Aquele era o primeiro dia de aula de muitos outros que viriam dentro daquele ambiente, sempre às tardes... Aquelas tardes estranhas, às vezes escuras, às vezes claras, às vezes as duas coisas, mas, muitas vezes, desgraçadamente melancólicas também; talvez isso me gerasse inspiração, mas ao mesmo tempo, estupidez, insegurança, medo — ou, na conclusão de fatores tão fúnebres: uma sensação de incompatibilidade com o mundo. Sim, sim, era sofrível, mas talvez a culpa disso tudo estivesse em atos passados, em perdas de oportunidades, em falta de habilidade nos momentos mais cruciais...! Mas é melhor que joguemos a subjectividade no lixo agora, pois a história que se segue não é nenhum pouco feliz — ao menos no seu final, com certeza não.

A vez que falei com ela foi numa das tardes claras: lembro-me como se fosse hoje, a vivacidade de sua fala, o balançar dos cabelos, e, enquanto nos perdíamos em diálogos triviais, eu já sabia que, a partir dali, uma bola de neve psicológica começaria a rolar. Era o seguinte: entre as aulas insuportáveis, o peso da rotina e o cansaço preguiçoso, teria de haver algo que pudesse deixar tudo mais leve, mais admirável — algo que me desse mais vontade de estar lá. E esse algo, como eu tinha começado a constatar, era ela.

— Você gosta realmente dela? — perguntou Carlos à mim, numa das tardes mais escuras.

— Eu não sei. Eu sinceramente não sei, mas prefiro dizer que sim. Esquecê-la talvez seja fácil, mas se eu o fizer, nada mais será interessante aqui.

— Ela tem uma relação muito boa com o namorado dela, você sabe. O mais provável de se acontecer numa situação dessas é você sair com o coração esquartejado!

Enquanto pensava e repensava sobre os conselhos de Carlos, eu ainda insistia em observá-la ininterruptamente. Afogado na obviedade da minha razão e na teimosia das minhas emoções, deixei o tempo passar. O frio no estômago foi ficando cada vez mais freqüente e incômodo, na mesma proporção em que a vontade de ir vê-la aumentava. Era um amor impossível — se é que algo assim existe —, mas eu sentia uma mínima parcela de esperança brotar dentro da minha mente, porque, com uma anormal perspicácia, minhas capacidades racionais iam sendo arrastadas para o fundo de um poço que poderia não ter fim.

Pensamentos maldosos e pesadelos desesperadores invadiam-me vez ou outra, o pânico me dominava numa quase total escuridão, e uma lucidez existencial me corroía por dentro: se a vida eterna existir, como alguém conseguirá agüentar a si mesmo até sempre? E se ela não existir, a não-existência deve realmente ser temida? Tudo era um beco sem saída, uma espera por nada, em qualquer aspecto ou ângulo que eu podia tentar visualizar; e ela, a moça, de repente, aparecia no meio de tudo isso, me fazendo sofrer, mas era um sofrimento suportável até então. Na proximidade com ela, a resplandecência vinha, mesmo que houvesse a impossibilidade de uma relação mais profunda.

Num fim de semana árduo e cansativo, eu desejei. Desejei poder tê-la mais do que tudo, mais do que qualquer pessoa ou coisa, mas não tê-la como um objeto, apenas desejei poder ficar junto com ela durante o tempo necessário para que pudesse ter um valor mais memorável para mim. O sol das tardes vinham à mim em coreografia com os ventos das tardes frias, mas a melancolia era o número predominante: juntei tudo e todos dentro da minha consciência e pedi, com certo pesar por imaginar a existência do egoísmo naquele ato, que o desejo se realizasse cem mil vezes mais rápido do que o normal, se isso fosse realmente algo possível de acontecer. E eu comecei a esperar.

Mas a espera não foi tão longa. Tudo durou duas semanas. Minha auto-confiança renasceu das cinzas mais cambaleantes possíveis, onde, seguidamente, eu era remetido a uma seqüência quase cronológica de sensações de nostalgia que haviam me marcado no passado de forma indefinida, mas que, talvez por minha própria desatenção, haviam sumido da minha memória. E, num dos dias em que essas nostalgias ocorriam, a moça chegou, à tarde — e ela não se sentia muito bem. Ela não ficou muito tempo ali: foi embora no intervalo, enquanto eu ficava ali, numa aflição torta, já que no fundo eu queria acreditar que ela, agora tão frágil, vulnerável e fraca, fosse, no dia seguinte, adentrar naquela sala tão saudável como nunca. Mas quatro dias se passaram, sem que ela aparecesse. No quinto dia, recebendo a notícia mais dilacerante de toda minha existência, eu quis morrer, pois, sim, ela estava... Morta.

— Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!

Tudo havia desabado, todas as minhas esperanças, todas as minhas crenças, todas as teorias em que eu acreditava, tudo que pudesse servir como uma base para a minha manutenção estava desmoronando violentamente.

Mas, com o tempo, veio a calma, e com ela eu vi uma hipótese. Sozinho, num ônibus, sem rumo ou objetivo algum, pensei: 'O desejo que fiz, aparentemente, fez com que as coisas acontecessem ao contrário... Mas, há uma intuição tola dentro de mim, uma intuição que sempre esteve aqui. Eu não sei se posso acreditar em vida após à morte, reencarnação ou coisas do tipo, mas se o desejo for realmente se realizar o mais rápido possível, eu preciso morrer logo... Preciso morrer para ter você nos meus braços, preciso morrer para poder ver seus olhos pungentes, preciso morrer para acariciar seus cabelos muito cacheados, preciso morrer para poder, no mínimo, vê-la novamente... Marina!'. E, nada mais fazia diferença. Eu aguardava. Apenas aguardava. A morte viria — e eu não tinha tanta pressa, já que eu não vivia mais à mercê do tempo."



Jorge Santos Machado, São Paulo, Outubro de 2008

sábado, 9 de agosto de 2008

Capítulo 11 - Aurora - Parte Final

— Espere um momento! — disse Manuela — Se nós cinco somos as crianças que ela devia ter visto para que pudesse se livrar da doença, e ela provavelmente já viu quatro de nós, só nos resta irmos até ela e tirar isso à limpo de uma vez por todas!
Jóhann silenciou-se. Sim, era verdade, mas dentro de todo esse cenário bizarro, faltavam-lhe informações.
— Escute, Manuela. As coisas não são tão fáceis assim. Por mais que sejamos algo que se aproxima de deuses, Isadora e eu infelizmente não sabemos qual é a localização atual de Sara, nem mesmo qual de vocês cinco é o indivíduo que faltou ser visto por ela. Só que as explicações maiores ainda virão, até mesmo para nós dois. O diretor está chegando.
Todos se entreolharam, inquietos. O tal diretor... Se Jóhann e Isadora eram quase deuses, o que poderia ser dito sobre esse diretor? Quer dizer: de onde haviam saído essas criaturas sobre-humanas que, repentinamente, vinham com histórias sobre acontecimentos nada comuns, como se a realidade fosse cheia dessas coisas totalmente anormais? Pois, se para quase cem por cento das pessoas no mundo a vida é uma chatice, o que faria Manuela, Dante, Marina, Cecília e Luiz serem seres tão importantes ao ponto de que essas coisas incríveis viessem a acontecer justamente com eles? Essas coisas simplesmente não ocorrem na vida real. De fato, não.
Jóhann se levantou e foi à cozinha. Isadora foi fumar na janela. Os cinco jovens estavam inicialmente quietos, mas Luiz tentou começar uma conversa:
— Ei... O que vocês acham de tudo isso? Nessas horas a gente fica tão surpreendido que nem dá pra esboçar uma reação direito. Pelo menos pra mim é assim.
— É evidentemente estranho — comentou Marina —, mas já que estamos nessa situação, não há como continuar sendo incrédulo quanto à isso, a não ser que você queira acreditar que está sofrendo de esquizofrenia.
Dante riu:
— Sim, e seria muito improvável que nós cinco estivéssemos sofrendo disso ao mesmo tempo. O jeito é aceitar a realidade absurda que surge e seguir em frente. Se bem que, creio eu, com o tempo, qualquer coisa no mundo acaba ficando monótona... Por isso que o ser humano tenta variar tanto a sua rotina.
— Realmente... — falou Cecília, ficando de pé e sentando-se na poltrona antes ocupada por Jóhann — Não dá pra sair correndo de medo. Mesmo assim, tudo é possível, então a possibilidade deles serem charlatães é totalmente concebível, não?
Manuela, para a surpresa de todos, começou a chorar com um tom alto de angústia.
— Eu... Eu sei que a culpa é minha! Só pode ser! Eu não me lembro de ter visto nenhuma garota como essa tal Sara no dia do aniversário de Marina! A criança que falta só pode ser eu!
Todos foram na direção dela para consolá-la.
— Mas, Manu... — disse Cecília, em tom brando — Nem eu me lembro. Pode ser qualquer um de nós, ora. Sara estava olhando para muitas crianças ao mesmo tempo. A única que Jóhann disse que certamente a viu foi Marina, e ninguém mais. Nada é certo ainda, não se culpe antes da hora.
A garota ruiva levantou o rosto cheio de lágrimas e disse, em meio a soluços:
— Mesmo assim... Ugh!... Eu sei que sou eu... Eu posso sentir! — e desabou em lágrimas pesadas.


Do lado de fora começava a chover. O ambiente daquela casa externamente branca se transmutava em algo cada vez mais enlevante. O cheiro de vapores desconhecidos invadiam os sentidos dos cinco jovens. Uma música começava a tocar da cozinha: era Canon em Ré Maior, de Johann Pachelbel, um dos compositores favoritos de Jóhann, tanto que ambos possuíam até o mesmo nome. Já se passavam das cinco horas da tarde. O dia estava ficando cada vez mais cinzento.
Na sala, Dante resolveu tentar dialogar com Manuela, mesmo depois de ambos terem "cortado relações" no episódio do encontro inesperado no ônibus.
— Você imaginava que, mesmo depois de termos decidido dar um tempo, íamos estar aqui, um ao lado do outro, dentro de toda essa maluquice?
A garota, pensativa, falou, enquanto apertava as mãos sobre os joelhos:
— Eu não consigo entender, Dante... Tem momentos em que eu sinto que errei ao ter te falado tudo aquilo, e tem momentos em que eu me sinto bem por me sentir livre de você. É tudo muito confuso, eu sou uma pessoa confusa, você sabe. Uuufff! Viver não é fácil, essa é a verdade.
— Entendo. Mas não pense que isso acontece só com você. Todo mundo tem seus momentos de erros e acertos, de certezas e incertezas, de achar que foi compreendido e de achar que não foi. O mundo se resume à isso. Não, não, acho que não, o mundo é mais que isso... Mas a verdade mesmo é que não passamos de seres humanos. Agora, aqueles dois, Isadora e Jóhann, bom, eu francamente fico sem palavras diante de coisas além da minha compreensão.
— Sei lá... Eu ainda estou esperando pelo momento em que eles irão parar e dizer que tudo isso não passa de uma grande brincadeira de mal gosto...
Os dois olharam-se, rindo.
Instantes depois, Jóhann e Isadora voltavam à sala. A chuva continuava cada vez mais forte do lado de fora.
— Ele já está aqui. — sussurrou Jóhann.
A campainha tocou em seguida. Isadora saiu para abrir o portão. Lá fora, Leon — o velho esquisito, com longos cabelos grisalhos e a espiral na testa — encontrava-se cercado por quatro homens inteiramente vestidos de branco, talvez fossem guarda-costas ou algo do tipo. Leon e os quatro homens foram conduzidos por Isadora para dentro da residência.
Quando Dante viu o homem da espiral na testa, assustou-se: então, de fato, tudo estava relacionado. Leon, homem que havia aparecido em seus sonhos era realmente o tal "diretor".
— Boa tarde à todos. Meu nome é Leon. Sou o diretor da agência que recruta indivíduos como Isadora e Jóhann, que são atualmente os únicos disponíveis para esta missão. Foi difícil chegar aqui, Ivan não sabia de fato qual era o caminho. Na verdade, já podíamos ter advindo aqui muito antes, mas eu tenho minhas tendências de querer agir como um ser humano normal. Creio que Jóhann já explicou-lhes tudo. A informação adicional que eu trago, no entanto, é vaga, mas mesmo assim nos ajudará relevantemente. Aparentemente, Sara se encontra em uma região na Europa entre a Bélgica e a Holanda. De acordo com a fonte, ela está vivendo — dormindo — numa mansão, onde mora com uma velha senhora que toma conta dela com muito carinho. É estranho, pois, como é possível que saibamos como é o lugar e quem são as pessoas que vivem nele sem sabermos exatamente a localização? É que, como eu poderia dizer, a minha fonte é um tanto quanto desconfiada e vive mudando de opinião e temperamento. Mas, isso não tem importância. A determinação fará com que encontremos quaisquer coisas que queiramos. É bom partirmos o quanto antes. A cada minuto que se passa, Sara corre o risco de entrar em colapso onírico e isto acarretará em graves problemas futuros para ela. É triste, mas eu me culpo diariamente por não ter me concentrado em ajudá-la antes, mas isto seria impossível, o momento de vocês se unirem é este, agora, e nenhum outro. Vamos, meus jovens. Levantem-se. Está na hora.
Surpresos, todos se levantaram — a coisa ficava cada vez mais estranha e incompreensível. Leon, seus homens e Isadora saíram, seguidos pelos cinco jovens que andavam agrupados sob a chuva; Jóhann foi o último a sair, fechando a porta atrás de si. Olhando para os jovens ao mesmo tempo em que esboçava um sutil sorriso no rosto, Leon apontou com a mão para os veículos estacionados do lado de fora do portão: além do Fiat Uno da mãe de Cecília, podia-se ver uma Van em estado de conservação questionável e, logo à frente dela, havia uma lustrosa Ferrari Enzo prateada que parecia mais e mais atraente à cada gota de chuva que lhe atingia.
Apesar de toda a continuidade dos acontecimentos, havia restado uma pergunta gritante no ar: onde estariam os verdadeiros donos daquela casa, os amigos de Cecília? Que tipo de ocorrência teria feito com que eles tivessem eventualmente abdicado da posse da casa para concederem-na a indivíduos estranhos e desconhecidos para que esses realizassem uma reunião sobre problemas sobre-humanos? Essa questão, de repente, pareceu não importar mais nem para Cecília, nem para nenhum dos cinco jovens ali. Talvez ninguém precisasse saber. Talvez isso não fosse fazer a mínima diferença dali para frente. Fingir que nada aconteceu era mais fácil, mais coerente, mais saudável... Mas provavelmente não era a coisa certa a se fazer.

sábado, 2 de agosto de 2008

Capítulo 10 - Aurora - Parte 2

A angústia vinha, dando cambalhotas: Manuela começava a se sentir cada vez mais exposta ali, diante de Jóhann e Isadora — e o islandês prosseguia:
— Percebo agora, com saudável clareza, que realmente fizemos a escolha certa. É lógico que, ao mesmo tempo que todo ser humano é igual ao outro, cada um é diferente do outro ao mesmo tempo e, desse ponto de vista, Marina é uma garota inteligentíssima e nos ajudará nas investigações.
— Que investigações? — interrogou Cecília.
— Haha! Será que você não poderia ser um pouco mais paciente, minha jovem? Eu chegarei nesta parte. Aliás, já que não aguenta de tanta curiosidade, vou falar de você. Cecília: uma dama peculiar, mas que acaba soando quase como uma coadjuvante. Infelizmente. Mas você ainda terá incontáveis oportunidades para brilhar. Sua capacidade intelectual é elevada, convenhamos, você também nos auxiliará bastante daqui para frente. Luiz e Dante também estão no mesmo patamar, então, por enquanto, deixaremos para falar sobre ambos mais à frente. Agora, você — e apontou para Manuela —, você é tão importante quanto Marina. Você, bela Manuela, representa um item de imensa importância para nós, um item indispensável. Manuela... Você representa... A emoção humana.
Manuela corou. Todos a observavam com sorrisos gentis.
— C-como assim? — perguntou ela, timidamente.
— Você é um mar de sentimentos, Manuela. Você é uma estrada, uma estrada onde quem a percorre sente o mais dinâmico turbilhão de sensações. Dante que o diga. Soma-se isto com seus volúveis cabelos vermelhos e o que temos? Uma estrada vermelha. Uma sinuosa estrada vermelha. Imagino se neste mundo possa existir alguém que seja uma fusão do seu valor sentimental com o valor intelectual de Marina. Mas a existência de um ser desses é muito improvável.
Dante, inesperadamente, se levantou do sofá e, com tom desafiador na voz, disse:
— Você está errado! Manuela não é só uma "estrada vermelha de sentimentos"! Ela é tão ou mais sábia do que qualquer um aqui, pois ela tem a árdua tarefa de ter que lidar com seu potencial emocional. Todo mundo sabe que, quando se trata de sentimentos, a barra é indiscutivelmente pesada. Eu tenho certeza de que ela, de fato, concorda comigo, já que poucos param pra pensar sobre isso.
A garota olhou para ele com carinho. O coração de Dante disparou. Jóhann, rindo mais uma vez, argumentou:
— Parabéns pela audaz observação, senhor Dante, estou vendo que não vou poder subestimar nenhum de vocês aqui. Mas vamos parar com essa conversa assaz melosa e vamos começar a falar do que importa. Preciso que ouçam com atenção e seriedade. Eu vou falar sobre um acontecimento. Tal acontecimento está intrinsecamente relacionado à vocês cinco. Foi há nove anos atrás... Na manhã do dia 29 de Agosto de 1999, dia do aniversário de Marina, foi quando, pela primeira vez, por ordem de nosso diretor, Isadora e eu pusemos os pés em solo brasileiro. Imediatamente, sentimos o peso da diversidade deste país, mas não tínhamos tempo pra pensar à respeito. Tínhamos que nos concentrar numa certa pessoa que, digamos, se encaixaria como um sexto integrante no grupo de vocês, mas isso, na prática, era algo impossível de ocorrer, já que a morte dela serviu como ponto principal para que a relação que existe entre vocês nascesse; em outras palavras, se ela não tivesse morrido, vocês cinco não estariam juntos aqui hoje. Seu nome era Sara. Era uma garota encantadora, belíssima, com cabelos tão dourados que cheguei a entrar em êxtase quando a vi. Lá estava ela: sozinha em casa, abandonada pela família, deitada na cama de seu quarto esperando as energias voltarem. Ela tinha uma doença bastante incomum: sentia contrações emocionais e mentais em todas as ocorrências de sua vida que chegariam a estar relacionadas com seus sonhos posteriormente. Compreenderam? Não se tratavam de sonhos premonitórios, mas sim o contrário, através dessas contrações, ela poderia perceber com "quem" ou com "o quê" os seus sonhos seriam. Mas não era sempre assim, pois outros tipos de sonhos assolavam sua individualidade consciente. Eram sonhos sempre macabros ou tristes e, segundo ela, iam sugando cada vez mais as suas energias vitais. Tal síndrome (sim, acho que posso chamar de síndrome, não?) foi afastando lentamente as pessoas que estavam ao seu redor, até mesmo os próprios pais, que na realidade eram adotivos e não aguentavam mais viver naquela situação, já que as contrações da garota se tornavam cada vez mais freqüentes. No fim, o que restou foi somente ela com ela mesma, mais debilitada do que nunca, mas ainda assim era a coisa mais bela que eu já havia visto. Quando Isadora e eu entramos na humilde casa da garota sem ao menos bater na porta, ela não ficou surpresa. Parecia que nos esperava. Ela se sentou na cama e com muito esforço deu um sorriso incrivelmente meigo... Prosseguimos, explicando à ela o motivo de estarmos ali: iríamos acabar com as contrações e com os sonhos que a faziam sofrer. Sim, aquela era a nossa missão desde o início. De acordo com as informações dadas pelo nosso diretor, a única maneira de curá-la seria no momento em que encontrasse cinco pessoas específicas e sonhasse com todas elas de uma vez só. Se tal feito fosse realizado, ela acordaria no dia seguinte totalmente livre das tais contrações. O dia 29 de Agosto daquele ano, no entanto, era o melhor dia para a concretização da cura: estas cinco pessoas, na época, crianças, — como vocês já imaginam, são vocês cinco aqui presentes, Marina, Dante, Luiz, Manuela e Cecília — estariam juntas na sua festa de aniversário de nove anos, Marina, e, tendo conhecimento de tal fato, Isadora e eu nos posicionamos de modo a ir até a tal festa de aniversário, apresentar Sara às cinco crianças, ter as contrações, para que, finalmente, pudesse sonhar com elas e se livrar de sua doença. Lembro-me até hoje do inesquecível vestido que Isadora havia dado à Sara... Era branco, simples, mas tinha uma aparência leve, onírica... Ela parecia um anjo. Lá estávamos nós na festa. Deixamos Sara sentada numa confortável cadeira no vasto quintal gramado. Crianças e adultos corriam pra lá e pra cá. Pedimos que Sara observasse cada detalhe com atenção, para que pudesse visualisar as crianças o quanto antes. Teriam que ser cinco contrações, e a primeira veio logo, no momento exato em que Marina e sua mãe vieram em nossa direção. A cena foi chocante — você se lembra, Marina?
Marina, então, concentrando-se, lembrou-se de algumas cenas vagas:
— Sim, mas não há nada muito claro na minha mente. Só me lembro de uma correria, minha mãe me puxou para trás, gritando para que eu fosse ir brincar com as outras crianças. O resto é muito vago.
— Entendo. Bom, como eu poderia dizer, os efeitos das contrações eram desconhecidos por mim e por Isadora, e aquele momento, mesmo para nós, foi tão marcante quanto triste: quando Sara fixou os olhos em Marina, pude sentir os tremores dentro da garota. Ela lançou-se ao chão, colocando as mãos na cabeça, gritando e chorando com uma intensidade medonha. Eu, saindo de um inicial estado de perplexidade, abracei-a, tentando acalmá-la, sem muito sucesso. Só depois de cerca de quinze minutos que ela conseguiu se acalmar. E a cena voltou a se repetir mais três vezes. Faltava apenas mais uma. Nós esperamos, mas a quinta contração não veio, o que levou Isadora e eu a imaginarmos que ela poderia ter visto duas crianças ao mesmo tempo e tido duas contrações simultâneas. Resolvemos dar uma volta pelo quintal gramado para que Sara pudesse ver cada uma das crianças dali. Naquela hora, a nossa falta de onisciência foi crucial. À noite, enqüanto dormia e sonhava com apenas quatro de vocês, Sara morreu. Ou melhor: não acordou, pois, ao contrário do que vocês podem pensar, ela continua, até hoje, no mundo dos sonhos, esperando pelo dia em que a quinta criança aparecerá para, enfim, libertá-la.